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As duas faces do urbano: inclusão e segregação

Rogério Dalla Riva


(Este texto é a parte III da Série "O Habitar". Confira também a Parte I e Parte II)

                                                                             

Da mesma forma que a identificação do habitar com o humano que o ocupa e o constrói, da qual se tratou nas publicações anteriores desta série, também se observa esse elo quanto ao Direito à Cidade. Tanto a Cidade em seu espaço físico, como o Urbano em sua natureza abstrata são construções dos indivíduos que nela habitam. Essa construção se dá, como já abordado na parte 1, não só de uma maneira multilateral e sistêmica no presente, mas de uma forma cumulativa, histórica.


A cidade, como espaço físico e em sua identidade urbana, é o fruto da História pela qual passou e dos acontecimentos que marcaram seus espaços físicos, um amálgama do que é e de vestígios do que foi. Nesse sentido, o sociólogo urbano Robert Park já definia as cidades – em sua obra On Social Control and Collective Behavior – como espaço feito pelo homem e espaço em que o próprio homem se refaz (1967).


A cidade será, da mesma forma, o resultado da ação de seus habitantes, o fruto de seu trabalho – e por isso principalmente da classe trabalhadora – através do qual é moldado o espaço físico e construídas as riquezas que compõe esse espaço. Veja-se que por "riquezas" não se trata aqui apenas das riquezas materiais, mas também de toda uma gama de construções culturais e ideológicas presentes nesse espaço urbano e que, de uma forma ou de outra, o compõe e dão vida. As atividades humanas em uma praça ou uma calçada são tão – ou mais – importantes que a calçada ou a praça em si. Isso porque a praça é e sempre foi instrumento da manifestação dos propósitos para os quais existe e é ocupada, sem estes é apenas um arremedo do que o ser humano acha belo na na natureza, como asseveram Milton Santos ao abordar a ‘’natureza artificializada’’ (SANTOS, 2006, p. 204) . Essa produção de cultura, conhecimento e vivência é parte do urbano e parte das riquezas que o compõe.


Da mesma forma, a cidade é composta pelos fundos públicos nela empregados e nos serviços públicos por ela espalhados. Os conflitos que permeiam o espaço urbano – e a própria segregação, nesse sentido - são justamente decorrentes da essência dessa  distribuição dos serviços e do dinheiro público. Os interesses econômicos e a incompetência da superestrutura estatal forçam a concentração de tais riquezas em pontos específicos da cidade, gerando paraísos ilhados num mar urbano de crueldade e abandono. As riquezas do espaço urbano são concentradas e “sua utilização efetiva é reservada àqueles que dispõe de um capital particular” (SANTOS, 2007:2, p. 31-32).


Essa situação resta mais do que clara quando um indivíduo provido de condições financeiras tem mais facilidade de locomoção – por ter um automóvel próprio em um sistema que privilegia essa forma de transporte – e consegue chegar mais facilmente ao centro de recursos da cidade que alguém de baixa renda, que só tem acesso a um transporte coletivo de baixa qualidade e insuficiente para a demanda dele exigida. Não só o direito de ir e vir é tolhido nesse processo, mas os demais direitos que desse dependem para se perfazer no mundo prático. Não se pode falar em direito à saúde quando o doente não consegue sequer chegar até o hospital. A centralização que serve à simplificação sem propósito, à pura obsessão pela economicidade desnecessária ou, ainda, a devaneios de padronização, nada mais é que uma manifestação de desprezo pelos que restam prejudicados nessas ações. A Cidade, por essa associação com o espaço físico, é meio para concretização de direitos.


Ora, como produto e bem de consumo capitalista, ela torna-se excludente e nega aos “não consumidores” o acesso aos bens e serviços que não são capazes de comprar e consumir. Nesse sentido, Ermínia Maricato afirma ser a cidade “um produto ou, em outras palavras, também um negócio, especialmente para os capitais que embolsam, com sua produção e exploração, lucros, juros e rendas” (MARICATO, 2013, p. 20). Assim, as disputas na – e pela – cidade são travadas “entre aqueles que querem dela melhores condições de vida e aqueles que visam apenas extrair ganhos” (Idem, p. 20), disputando os fundos públicos e sua absorção pelo espaço.


Nesse mesmo sentido, Carlos Vainer – em seu artigo “Quando a cidade vai às ruas” – chama a cidade dos tempos de hoje de “Cidade neoliberal”, pautada pelas “necessidades mais gerais de acumulação e circulação do capital” (VAINER, 2013, p. 37). Nela, há uma visão de que a atuação estatal na ordem urbana é algo a ser evitado, devendo ser o mercado a ditar as regras do crescimento da cidade e o estado mero coadjuvante submetido à economia. Ora, essa visão muito se aproxima da noção acumuladora e "industrialóide" e produtivista, citada nos pontos anteriores deste trabalho. É justamente esse paradigma da produtividade, da produção de capital acima de tudo, que macula e distorce o espaço físico das cidades, desviando e concentrando recursos e riquezas desse urbano.


Neste contexto, a cidade de nossos tempos se aproxima da cidade industrial, pois da mesma forma que os conjuntos habitacionais foram, naquele período, construídos em zonas distantes dos centros urbanos e próximos aos distritos industriais, com o único intuito de fortalecer o jugo da fábrica sobre os que nela trabalhava, também hoje as populações carentes são deslocadas de seu habitar quando este coincide com as áreas que receberão investimentos públicos, seja pela expulsão direta ou pela pressão econômica, tornando inviável a permanência da população naquela área.


Exemplo de como as violações se reiteram de forma cíclica, é o caso recente do Conflito Ambiental de Maceió/AL, envolvendo a Braskem, que abordamos numa publicação anterior do Ruptura. Em decorrência das atividades da mineradora, vários bairros da cidade estão em processo de contínuo afundamento, colapsando sobre as minas vazias em desmoronamento abaixo da cidade. As pretensas soluções apresentadas pela empresa, como as realocações, tiveram um planejamento “feito de maneira desordenada levando ao espraiamento, levando à vulnerabilidade de pessoas e a pressão sobre a infraestrutura viária existente, a desativação de linhas de ônibus e o impacto significativo no VLT de Maceió que segundo a CPTU perdeu 80% dos passageiros”, como ressaltou o professor, arquiteto e urbanista Renan Durval Aparecido da Silva (MAIS DIALOGOS, 2023).


As populações deslocadas foram privadas não apenas de sua vivência comunitária, mas expulsas para pontos da cidade onde não possuem necessariamente uma rede de apoio, ficando obrigados a deslocar longas distâncias para manter seus vínculos (de trabalho, subsistência e vida) ou lidar com o peso de recomeçar novos. Além disso, a infraestrutura e serviços públicos que atendiam essa população e o restante da cidade naqueles locais deixou de existir. Restam, assim, para além dos danos incalculáveis ao meio ambiente, uma parte desassistida dos moradores que permanece em áreas desassistidas de serviços básicos, como o Bairro do Flexal, e uma sobrecarga de demanda em outros pontos da cidade para onde os moradores realocados foram praticamente expulsos passando, assim, da noite para o dia, a depender dos serviços públicos lá em geral indisponíveis.


Se considerarmos a História do Brasil, é possível perceber como essa mecânica não é exclusividade de nossos tempos. As políticas urbanas higienistas do início do século XX em diversas cidades brasileira (notadamente o caso do Rio de Janeiro, amplamente documentado)  (ASSOCIAÇÃO RIO MEMÓRIAS, 2024), com a expulsão da população pobre para a periferia, são a prova de que as politicas de segregação e de primazia dos interesses do capital prevalecem na atuação estatal já a muito tempo. Veja-se que essas práticas não diferem em muito das ações ou omissões no Caso de Maceió, já que, ao fim e ao cabo, se deslocou uma população inteira de uma área central para a periferia unicamente porque foram priorizados os interesses da empresa envolvida em detrimento daquelas comunidades durante décadas contínuas. Ora, embora essencialmente a cidade seja uma entidade de resistência ao capital e a indústria produtivista, uma vez por estes subvertida, pode ser usada – como efetivamente tem sido – como mecanismo de perpetuação da segregação e da desigualdade.


Essa força segregadora do capital coincide, aqui, com sua força homogeneizadora. É da natureza do capital tentar impor uma cultura homogênea, calcada num modelo consumista, neoliberal e produtivista, negando a multiplicidade das culturas e das realidades humanas. A ação segregadora, nesse sentido, é justamente a de negar as diferenças, a de enxergar o espaço urbano como um dado uno e invariável  que pode ser dividido, quantificado e “monetizado” – para utilizar a expressão de Milton Santos (2007:2, p. 29).


É neste sentido que o Urbano, considerado de forma dissociada da opressão capitalista, é uma força de contraposição à segregação, pois ao reconhecermos diferenças, damos um passo no entendimento do todo, na sedimentação de um cenário com “multiplicidade de grupos culturais, em que todas as tribos, através de mil e uma formas de expressão, mais ou menos transgressoras, se insurgem contra um sistema social e uma cidade que lhes negam lugar e passagem” (VAINER, 2013, p. 40), e é nisso que se faz possível a mudança, não mais forçando uma suposta evolução – sempre tomada dentro dos padrões capital e industrialistas de evolução – mas estimulando o desenvolvimento dos diferentes a sua maneira.


Somam-se tais conceitos aos trazidos por Milton Santos na obra Pensando o espaço do homem, quando este discorre sobre à fragmentação do espaço humano. Ora, na medida em que o espaço regional torna-se parte num processo de produção maior – que envolve justamente regiões diversas agindo em conjunto – também a noção que cada indivíduo – ou grupo – possui do processo como um todo fica incompleta. Convivendo com parcelas, também o entendimento humano do processo torna-se fragmentado e “o homem produtor sabe cada vez menos quem é o criador de novos espaços, quem é o pensador, o planificador, o beneficiário” (SANTOS, 2007:2, p. 29). É em decorrência dessa fragmentação do espaço que o ser humano, também fragmentado, torna-se uma peça no sistema e uma mercadoria ao mesmo tempo. Através da fragmentação da produção e do espaço que se reforça a alienação do ser humano e, através desta, se corrompe a cidade.


Temos de lembrar, já arrematando, que a fragmentação do espaço, decorrente do processo capital-industrialista e seu produtivismo, não se confunde com a divisão natural existente entre os espaços. O industrialismo força uma divisão do espaço, legando a cada parte um parcela do processo produtivo, mas nunca o processo todo, fragmentando o espaço e alienando os homens do conhecimento do processo de produção em sua completude. Conforme Milton Santos, “como as práxis de cada um são fragmentárias, o espaço dos indivíduos aparece como fragmentos de realidade e não permite reconstruir o funcionamento unitário do espaço” (Idem, p. 34) tornando o habitar do homem seu próprio inimigo. Embora pervertido, embora sirva como instrumento segregador, o espaço urbano é, por natureza, um elemento promotor da diversidade,


Não é à toa que Jane Jacobs afirma serem as cidades “geradoras naturais de diversidade e fecundas incubadoras de novos empreendimentos e ideias de toda espécie” (JACOBS, 2000, p. 159). Embora tomadas pela ânsia segregadora do capital, a cidade, por sua natureza, luta contra esse processo e na promoção da diversidade, combate as forças homogeneizadoras. A proximidade dos muitos indivíduos coloca-os em contato com diversas coletividades, grupos estes que eles compõe simultaneamente. “Seja de que espécie for, a diversidade gerada pelas cidades repousa no fato de que nelas muitas pessoas estão bastante próximas e elas manifestam os mais diferentes gostos, habilidades, necessidade, carências e obsessões” (Idem, p. 161). Por ser a produção de indivíduos e, da mesma forma, de coletividades, “a cidade é feita de várias cidades, de diversos lugares que vão se inserindo nos interstícios do urbano, onde a vida, repleta de relações, se desenvolve” (HISSA in BRANDÃO, 2006, p. 86). Há no humano que constrói uma ânsia pelo outro, pela presença do coletivo. 


Referências


ASSOCIAÇÃO RIO MEMÓRIAS (Rio de Janeiro). Os cortiços e as Hospedarias. Disponível em: https://riomemorias.com.br/memoria/o-crescimento-populacional-e-as-alternativas-de-moradia-os-corticos-e-as-hospedarias/. Acesso em: 20 set. 2024.


Depoimento. In: MAIS DIÁLOGOS. Escuta Pública - Plano de Ações Sociourbanísticas (PAS). YouTube, 21 de Mar. de 2023. Disponível em: https://www.youtube.com/live/M2V0YwAuask?feature=share&t=15155. Acesso em 29 de Mar. de 2023.


HISSA, Cássio Eduardo Viana. Ambiente e vida na cidade. In: BRANDÃO, Carlos Antônio Leite (org.). As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006. p. 21-34.


MARICATO, Ermínia. É uma questão urbana, Estúpido! In: MARICATO, Ermínia et. al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1 ed. São paulo: Boitempo;Carta Maior, 2013.


JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


PARK, Robert. On Social Control and Collective Behavior. Chicago: University of Chicago Press, 1967.


SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. (Coleção Milton Santos).


SANTOS, Milton. Pensando o espaço do homem. 5 ed. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2007.


VAINER, Carlos. Quando a cidade vai às ruas. In: MARICATO, Ermínia et. al. Cidades rebeldes: passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. 1 ed. São Paulo: Boitempo;Carta Maior, 2013.

 

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