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Quando o Estado falha, o ciclo se repete: um ano após a catástrofe de 2024, chuvas voltam a inundar território gaúcho e a expor fragilidades de gestão

Katiele Daiana da Silva Rehbein[1]

 

[1] Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (com bolsa Capes Proex). Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestra em Ciências Ambientais pela Universidade de Passo Fundo (com bolsa Capes Prosup). Especialização em Direito Ambiental pelo Centro Universitário Internacional. Especialista em Direito Constitucional pela Faculdade Legale. Graduada em Direito pela Faculdade Antonio Meneghetti. Técnica em Meio Ambiente pelo Instituto Federal Farroupilha. Professora de Direito. Colaboradora Honorária do Ruptura.     


       As mudanças climáticas, impulsionadas por ações antrópicas, têm produzido efeitos cada vez mais intensos sobre a vida e territórios, dado o escalonamento de eventos extremos, como secas, tempestades e enchentes. No Brasil, esse cenário tem se manifestado de forma particularmente violenta na região Sul, onde tais fenômenos deixaram de ser eventos isolados para se materializar como parte de um ciclo continuum. O estado do Rio Grande do Sul, em especial, tornou-se um símbolo emblemático desta “nova normalidade”.

Sem que houvesse plena recuperação da enchente de 2023, o Rio Grande do Sul foi novamente atingido, em maio de 2024, por aquele que se configurou como o maior desastre climático de sua história, e também o mais severo já registrado no Brasil. Das 497 municipalidades gaúchas, 478 (96%) foram afetadas por volumes excepcionais de chuva, inundações extremas e deslizamentos de terra. Aproximadamente 2,4 milhões de pessoas foram acometidas, o equivalente a quase um quinto da população estadual. O extremo resultou em 184 mortes confirmadas, 25 pessoas ainda desaparecidas (Rehbein; Alves, 2025a) e mais de 600 mil pessoas deslocadas de modo forçoso (Rehbein; Alves, 2025b).

A Região Metropolitana de Porto Alegre foi demasiadamente impactada, em razão da alta densidade populacional e do processo intenso de urbanização. Municípios como Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul e outros, que jamais haviam sido atingidos com tamanha magnitude, foram parcial ou totalmente submersos (Rehbein; Tybusch, 2025), de modo que a vida cotidiana da população residente foi prejudicada com grande envergadura.

Na capital gaúcha, o Lago Guaíba ultrapassou em 1,75 metro a cota de inundação, superando o recorde histórico da enchente de 1941, evento que motivou a construção do Muro da Mauá enquanto estrutura de contenção hídrica. Contabilizou-se mais de 160,2 mil pessoas afetadas e 39,5 mil edificações danificadas ou destruídas, distribuídas em 46 bairros. Ademais, os dez bairros mais atingidos concentram cerca de 117,4 mil pessoas impactadas, majoritariamente pertencentes a famílias de baixa renda (Rehbein; Alves, 2025a).

As consequências foram vultosas, pois vias foram interditadas, milhares de residências e estabelecimentos comerciais destruídos ou agudamente danificados, e serviços essenciais como saúde, transporte público, fornecimento de energia elétrica e saneamento básico sofreram longas interrupções. Para além dos danos materiais, a população enfrentou perdas subjetivas e emocionais irreparáveis, tendo suas memórias, vínculos comunitários, relações afetivas, animais de estimação e, sobretudo, o sentimento de pertencimento ao território, abruptamente interrompidos ou ceifados.

Apesar das lições da tragédia de 2024, pode-se dizer que a resposta estatal se manteve centrada em ações emergenciais, sem que se verifique avanços importantes voltados à prevenção de desastres futuros, ou seja, nota-se uma política de reação. A insuficiência das medidas tornou-se evidente em junho de 2025, momento em que o Rio Grande do Sul voltou a ser afetado por um novo episódio de chuvas intensas, inundações e deslizamentos de terra.

De acordo com a Defesa Civil, até 19 de junho, 86 municípios relataram ocorrências associadas às fortes chuvas (Garcia, 2025), incluindo-se alagamentos, bloqueio de vias, queda de árvores, danos a imóveis e outros transtornos. As regiões mais afetadas se concentram na Região Central, na Fronteira Oeste, Vale do Taquari e Região Metropolitana de Porto Alegre. Até o momento, registram-se duas mortes, um desaparecimento e cerca de 2.600 pessoas deslocadas (Zero Hora, 2025).

Em Canoas, por exemplo, as chuvas voltaram a causar inundações, sobretudo no bairro Mathias Velho, um dos mais impactados durante a enchente de 2024. Estimativas da Defesa Civil apontam que cerca de 35% da cidade está enfrentando algum tipo de transtorno decorrente das precipitações, número inferior aos 60% registrados no evento extremo do ano anterior. Ainda assim, o impacto atual é proeminente, pois aproximadamente 100 mil pessoas foram afetadas, considerando-se prejuízos relacionados à mobilidade urbana, habitações, serviços essenciais e interrupções no transporte público. Desse total, 700 pessoas precisaram ser deslocadas em razão dos alagamentos até o momento (Zero Hora, 2025).

A recorrência do colapso hídrico, observado praticamente um ano após a catástrofe de 2024, espelha, de forma inequívoca, a fragilidade estrutural do aparato estatal e a continuidade da lacuna em políticas públicas orientadas à prevenção. A população, e o próprio estado, permanece em condição de alta vulnerabilidade diante de eventos hidrometeorológicos extremos que, em decorrência das mudanças climáticas, tornam-se progressivamente mais frequentes e intensos.

Tal contexto traz para pauta a urgência de se implementar uma gestão de desastres melhor delineada, que não se limite à resposta imediata, mas abarque a prevenção e a reconstrução a longo prazo. O ciclo de gestão de desastres, segundo a formulação teórica de Farber (2012), organiza-se em cinco fases: 1) mitigação dos riscos; 2) ocorrência do desastre; 3) resposta de emergência; 4) compensação; e 5) reconstrução. As fases de ocorrência e de resposta tendem a ocorrer de forma simultânea ou em sequência imediata, dada a natureza abrupta dos eventos. A estrutura define um ciclo cujas estratégias de prevenção, resposta e reconstrução devem estar articuladas.

No ordenamento jurídico pátrio, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei n. 12.608/2012) adota essa lógica cíclica por meio da divisão das ações em fases ex-ante (risco) e ex-post (ocorrência). A fase ex-ante compreende medidas de prevenção, como o mapeamento e monitoramento de riscos, bem como ações de preparação, a exemplo da capacitação institucional e da implementação de sistemas de alerta precoce. Por sua vez, a fase ex-post contempla, inicialmente, a resposta ao desastre, com atividades de busca e salvamento, atendimento emergencial e restabelecimento dos serviços essenciais, seguida da recuperação, que visa restaurar ecossistemas, reconstruir a infraestrutura, reabilitar as condições de vida das populações afetadas e fomentar o desenvolvimento socioeconômico local, prevenindo a perpetuação da vulnerabilidade (Rehbein; Tybusch, 2025).

No contexto do Rio Grande do Sul, verifica-se uma priorização à fase de resposta aos desastres, em detrimento da prevenção e da reconstrução, que continuam negligenciadas. Apesar do anúncio de recursos destinados à reconstrução após a tragédia de 2024, poucas intervenções foram efetivamente iniciadas, mesmo após doze meses do evento. O “Plano Rio Grande”, proposto como um ambicioso programa de reconstrução, sob a promessa de um “Plano Marshall”, em alusão ao programa de reconstrução europeu no pós-Segunda Guerra Mundial, exemplifica o descompasso entre a retórica e a prática (Oliveira, 2025).

O Plano, estruturado em 121 projetos distribuídos entre os eixos “Emergencial” (54), “Reconstrução” (26) e “Rio Grande do Sul do Futuro” (41), certifica a concentração de iniciativas voltadas à recuperação, com 42 projetos classificados como ações de reconstrução, 29 de resposta, 47 de preparação, apenas três voltados à mitigação e nenhum diretamente relacionado à prevenção. Nesse cenário, cerca de 60% dos projetos encontram-se “em andamento” ou “em execução”, embora, em sua maioria, sem detalhamento sobre os avanços. Outros 18 estão em fase de planejamento ou contratação e dois ainda não foram iniciados. Dos projetos, 28 foram finalizados, estando relacionados à resposta imediata (Oliveira, 2025).

Nota-se que o foco do Plano segue restrito ao curto prazo. Entre os 121 projetos, ao menos 16 deveriam ser considerados prioritários, incluindo-se os planos diretores e de contingência, todavia, nenhum destes foi concluído até o momento. Se destaca que medidas de prevenção, embora menos visíveis, são mais econômicas do que as ações de reconstrução. Porém, o plano tem se limitado a obras estruturais, como desassoreamento, sem contemplar mudanças paradigmáticas que incorporem a prevenção como diretriz (Oliveira, 2025).

Assim, o Plano carece de maior transparência, participação popular e foco na prevenção, pois, ao que se nota, tem perpetuado a lógica da resposta imediatista. Essa crítica é reforçada por especialistas que alertam que os sistemas hídricos e urbanos seguem despreparados mesmo para volumes moderados de chuva (Oliveira, 2025), o que, de fato, pode ser observado com as chuvas de junho de 2025.

A ausência de estratégia de longo prazo corrobora com a tese da persistência de um modelo de governança ineficiente, incapaz de converter o desastre em aprendizado e medidas estruturais de prevenção. Tal inércia institucional perpetua desigualdades históricas e cria novas formas de exclusão, maximizando o quadro de injustiça socioambiental, sobretudo porque as populações mais vulnerabilizadas, ainda em processo de recuperação da enchente de 2024, se veem, novamente, diante de um novo desastre.

A recorrência de eventos extremos escancara a negligência estatal em reconhecer a previsibilidade das mudanças climáticas e em investir em ações preventivas e adaptativas. Trata-se de uma violação direta a preceitos fundamentais há muito estabelecidos, como o direito à moradia, à segurança e à dignidade. Diante desse cenário, torna-se urgente a adoção de um modelo de governança preventivo, e não reativo como tem se edificado. A experiência do Rio Grande do Sul deve ser referência para a construção de uma política ancorada na ciência, que há muito vem sinalizando a problemática.

 

REFERÊNCIAS

 

FARBER, Daniel. Disaster Law and Emerging Issues in Brazil. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, n. 1, p. 2-15, 2012.

 

GARCIA, Gabriela. Sobe para 86 o número de municípios com prejuízos por chuvas no RS: duas mortes foram confirmadas; homem segue desaparecido. CNN Brasil, 19 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/sul/rs/sobe-para-86-o-numero-de-municipios-com-prejuizos-por-chuvas-no-rs/. Acesso em: 19 jun. 2025.

 

OLIVEIRA, Rafael. Plano de reconstrução do RS avança devagar, sem transparência e não mira em prevenção. Agência Pública, 28 abr. 2025. Disponível em: https://apublica.org/2025/04/plano-de-reconstrucao-do-rs-avanca-devagar-sem-transparencia-e-nao-mira-em-prevencao. Acesso em: 19 jun. 2025.

 

REHBEIN, Katiele Daiana da Silva; TYBUSCH, Jerônimo Siqueira. Resposta estatal à desastres: as enchentes do Rio Grande do Sul (Brasil) e de Valência (Espanha) em perspectiva comparada. Revista Catalana de Dret Ambiental, Tarragona, v. XVI, n. 1, p. 1–40, 2025.

 

REHBEIN, Katiele Daiana da Silva; ALVES, Felipe Dalenogare. Mudanças climáticas e direito à moradia: impacto das enchentes de 2024 na capital gaúcha. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, Ed. RT, v. 117, a. 30, p. 219-258, Jan./Mar. 2025a.

 

REHBEIN, Katiele Daiana da Silva; ALVES, Felipe Dalenogare. Mobilidade humana em face às mudanças climáticas: a urgência na criação de um instituto jurídico aos deslocados climático-ambientais. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 1–26, 2025b.

 

ZERO HORA. RS chega a duas mortes e 68 municípios afetados em razão de temporal, e Região Metropolitana revive drama dos alagamentos. Notícias, 18 jun. 2025. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2025/06/rs-chega-a-duas-mortes-e-68-municipios-afetados-em-razao-de-temporal-e-regiao-metropolitana-revive-drama-dos-alagamentos-cmc2j0zz8003601arsojbsf6p.html?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 19 jun. 2025.

 



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