O princípio de precaução e o temor de uma nova era do gelo.
- Ligia Payão Chizolini
- 10 de abr.
- 6 min de leitura
Ligia Payão Chizolini[1]
Diante do presente estado mundial de emergência climática, no qual consequências reais e atuais das mudanças climáticas, tais como enchentes e secas, já são sentidas por todo o globo, resultados ainda cientificamente incertos do aquecimento global podem não receber tanta atenção. Contudo, o importante Princípio da Precaução faz lembrar que a ausência de um conhecimento científico consolidado não pode impedir a proteção do Meio Ambiente, tal como positivado na Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92) no seu princípio 15:
Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental (Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92)).
Nesse contexto, destaca-se uma consequência ainda incerta das mudanças climáticas, mas que já preocupa os cientistas da área: a drástica redução das temperaturas no norte da Europa nas próximas décadas. Esse fenômeno tem sido, inclusive, apelidado de “uma nova era do gelo no Hemisfério Norte”.
A mudança climática devastadora seria resultado de alteração no comportamento de um conjunto de correntes oceânicas essencial para distribuir calor ao redor do planeta, em especial para a região do Atlântico Norte, e também para distribuição de chuvas no planeta. Com o aumento de temperatura ocasionado pelas mudanças climáticas, geleiras estão derretendo e suas águas doces estão se juntando às águas salinas dos oceanos, o que altera a densidade das últimas.
Ocorre que a mudança na densidade das águas oceânicas pode interferir no comportamento do conjunto de correntes marítimas, sendo uma delas a circulação meridional de revolvimento do Atlântico (AMOC). Esse conjunto de correntes é responsável por levar ar quente dos trópicos para altas latitudes, tanto na atmosfera quanto no oceano. Ao transportar relevante quantidade de calor para o norte, a AMOC influencia o clima da Europa e torna as temperaturas mais amenas nesse continente. Contudo, estudo recente aponta para a possibilidade de a AMOC estar enfraquecendo, o que levaria a um esfriamento severo da região mencionada, entre outras consequências como a alteração no regime de chuvas do planeta.
Segundo o artigo científico publicado na revista Nature, denominado “Warning of a forthcoming collapse of the Atlantic meridional overturning circulation” ou “Aviso da chegada de um colapso da circulação de revolvimento meridional do Atlântico”, em tradução livre: “o colapso iminente da circulação de revolvimento meridional do Atlântico (AMOC) é uma grande preocupação, pois é um dos elementos críticos mais importantes do sistema climático da Terra” (DITLEVSEN, DITLEVSEN, 2023 [tradução nossa]).
De acordo com a publicação, há uma estimativa que um colapso da AMOC pode ocorrer ainda no meio do século, considerando o cenário de emissões de gases de efeito estufa que se espera no futuro. Os cientistas utilizaram métodos matemáticos e novos dados coletados para colher indicadores de que a corrente estaria perto de um “ponto de inflexão”, que seria o momento em que o colapso da corrente marítima aconteceria de maneira irreversível. Segundo o estudo há:
Alta confiança que o ponto de inflexão ocorrerá já em meados deste século (com um intervalo de confiança de 95% entre 2025 e 2095). Esses resultados são baseados na suposição de que o modelo está aproximadamente correto e, naturalmente, não podemos descartar que outros mecanismos estejam em jogo, tornando a incerteza ainda maior. No entanto, reduzimos a análise ao mínimo de suposições possíveis e fundamentadas. Dada a importância da AMOC para o sistema climático, não devemos ignorar esses claros indicadores de um colapso iminente (DITLEVSEN, DITLEVSEN, 2023 [tradução nossa]).
Diante dos resultados obtidos, os autores concluíram que são necessárias medidas urgentes para a redução das emissões globais dos gases de efeito estufa, com o objetivo de limitar o aumento da temperatura global e o despejamento de água doce advinda do derretimento de gelo na região do Atlântico Norte, a fim de que se evite o momento crítico em que a circulação de revolvimento meridional do Atlântico seja alterada irreversivelmente, modificando o clima do planeta de maneira severa e preocupante.
No entanto, vale ressaltar que também há estudos científicos que apontam para a estabilidade da AMOC. O artigo “Atlantic overturning inferred from air-sea heat fluxes indicates no decline since the 1960s” (ou “O revolvimento do Atlântico inferido a partir dos fluxos de calor ar-mar indica que não houve declínio desde a década de 1960”, em tradução livre) concluiu que não há declínio significativo na força da corrente marítima. Esse estudo se diferencia do anterior pois utilizou outro método de pesquisa, focado em realizar uma análise do comportamento da AMOC com base a troca de calor entre o oceano e a atmosfera, em vez de buscar indícios de pontos de inflexão.
Interessante notar que ambas as pesquisas foram publicadas na mesma e renomada revista de divulgação cientifica mundial, com metodologias abrangentes e tendo sido revisadas por pares, mas, ainda assim, apresentam resultados divergentes. A incerteza cientifica advém da complexidade do sistema climático analisado, uma vez que o estudo das correntes marítimas depende da intervenção de múltiplos fatores, sendo que alguns deles são imprevisíveis e alguns dados são escassos. Nesse sentido, as duas pesquisas admitem limitações e esclarecem os pressupostos do qual partiram a sua análise.
Esse cenário de incerteza cientifica quanto a uma gravíssima e potencialmente destruidora consequência das mudanças climáticas ressalta a importância vital do Princípio da Precaução no Direito Ambiental. Segundo esse, situações de incerteza cientifica não devem justificar a inércia na proteção ao Meio Ambiente. Isso porque, um perigo iminente que ameaça a existência humana e a biodiversidade, ainda que apenas estimado ou potencial, já possui relevância suficiente para que ações sejam tomadas a fim de prevenir sua ocorrência. Afinal, ainda que eventualmente se descubra que o perigo não era real ou que sua existência foi superestimada, os esforços para contê-lo não terão sido inúteis, pois resultado muito pior seria se o inverso tivesse ocorrido.
O caso concreto do risco do enfraquecimento da AMOC reforça o argumento da essencialidade do Princípio da Precaução diante da atual realidade das mudanças climáticas, tendo em vista que dada a grandiosidade do problema, algumas de suas consequências estarão envoltas em um cenário de incertezas cientificas.
Nesse sentido, os professores Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fernsterseifer, enfatizam a importância do Princípio da Precaução que seria:
(...) uma espécie de princípio da prevenção qualificado ou mais desenvolvido, abre caminho para uma nova racionalidade jurídica, mais abrangente e complexa, vinculando a ação humana presente a consequências e resultados futuros. Isso faz com que o princípio da precaução seja um dos pilares mais importantes da tutela jurídica do meio ambiente e, consequentemente, seja reconhecido como um dos princípios gerais do Direito Ambiental e igualmente do Direito Climático (SARLET; WEDY; FENSTERSEIFER, 2023).
Portanto, o enfraquecimento de um conjunto de correntes climáticas, tal como a AMOC, traz consequências severas ao clima planetário, sendo que a incerteza científica sobre o seu colapso em um futuro próximo traz à tona a relevância cada vez maior do Princípio da Precaução no Direito Ambiental, especialmente diante da magnitude e complexidade do desafio que as mudanças climáticas representam para a humanidade.
Bibliografia
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: MMA, 1992. Disponível em: https://cetesb.sp.gov.br/proclima/wp-content/uploads/sites/36/2013/12/declaracao_rio_ma.pdf. Acesso em: 26.02.225
DITLEVSEN, P., DITLEVSEN, S. Warning of a forthcoming collapse of the Atlantic meridional overturning circulation. Nat Commun 14, 4254 (2023). https://doi.org/10.1038/s41467-023-39810-w
TERHAAR, J., VOGT, L. & FOUKAL, N.P. Atlantic overturning inferred from air-sea heat fluxes indicates no decline since the 1960s. Nat Commun 16, 222 (2025). https://doi.org/10.1038/s41467-024-55297-
MARTÍN LEÓN, Francisco. Um estudo sobre a AMOC revela que esta corrente oceânica crítica não diminuiu nos últimos 60 anos! Tempo.com, 20 jan. 2025. Disponível em: https://www.tempo.com/noticias/actualidade/um-estudo-sobre-a-amoc-revela-que-esta-corrente-oceanica-critica-nao-diminuiu-nos-ultimos-60-anos.html. Acesso em: 25 fev. 2025.
CLIMATEMPO. AMOC: o que acontece se esta corrente parar?. Climatempo, 7 fev. 2022. Disponível em: https://www.climatempo.com.br/noticia/2022/02/07/amoc-o-que-acontece-se-esta-corrente-parar--4172. Acesso em: 25 fev. 2025.
SARLET, Ingo Wolfgang; WEDY, Gabriel; FENSTERSEIFER, Tiago. Curso de direito climático. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
[1] Residente Jurídica do Ministério Público de Goiás, Pós-graduada em Meio Ambiente e Sustentabilidade pela FGV e em pós-graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico na Universidade de São Paulo.
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