Em meio à mobilização nacional causada pela recente tragédia no Rio Grande do Sul, o Senado Nacional contribuiu com um importante passo no caminho de adaptação normativa às mudanças climáticas: aprovou, no dia 15 de maio, o Projeto de Lei (PL) 4.129/2021, que estabelece regras para a elaboração de planos de adaptação às mudanças climáticas.
Caso seja aprovado na Câmara de Deputados, e sancionado pelo Presidente Lula, este PL se converterá em uma importante atualização à Política Nacional sobre Mudança do Clima, de 2009. Dentre as mudanças propostas, se destaca a incorporação da gestão de riscos climáticos às políticas públicas setoriais e estratégias de desenvolvimento local, estadual, regional e nacional, bem como a criação de instrumentos econômicos e socioambientais para adaptação às mudanças climáticas, baseando-se nos planos de redução de gases de efeito estufa adotados pelo Brasil, assim como os demais compromissos firmados com base no Acordo de Paris[1].
No entanto, apesar da relevância inquestionável, o senso de urgência decorrente dos impactos cada vez mais frequentes das mudanças climáticas nos obriga a considerar quais outras mudanças normativas devemos adotar para combater e nos adaptar a esses fenômenos. Este esforço não deve recair exclusivamente sobre o Poder Executivo, mas sim ser uma responsabilidade conjunta do Poder Legislativo, que deve desde já voltar esforços para atualizar a legislação brasileira em todos os aspectos pertinentes à adaptação às mudanças climáticas.
Nesse contexto, é válido realizar uma análise comparativa dos esforços implementados por outros países, que podem servir de inspiração para as discussões legislativas no Congresso brasileiro. Um exemplo inspirador pode ser encontrado em um de nossos vizinhos mais próximos, o Chile.
Recentemente, o país sul-americano implementou a Ley Marco de Cambio Climático (LMCC), resultado de anos de discussões político-legislativas. Esta lei estabelece um quadro de diretrizes para a atuação dos governos em nível nacional, regional e municipal, e altera diversas normativas nacionais como parte de um plano para combate e adaptação do país às mudanças climáticas.
Os objetivos da lei chilena incluem alcançar a meta de neutralidade de carbono até o ano de 2050, promover adaptação do país às mudanças climáticas, estimular a resiliência para conviver com seus efeitos e reduzir a vulnerabilidade da população a seus efeitos[2]. Algumas medidas específicas da lei podem servir de inspiração e guiar o debate político-normativo brasileiro sobre a adaptação às mudanças climáticas.
Por exemplo, para buscar alcançar seu principal objetivo de neutralidade de carbono até o ano de 2050, a LMCC estabelece uma “estratégia climática de longo prazo” (ECLP), mecanismo incorporado do Acordo de Paris, em que se definem as emissões máximas de carbono permitidas por cada setor econômico do país. Para definir a ECLP, é levada em consideração a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do país, com orçamentos proporcionalmente definidos entre os Ministérios com base no nível de contribuição de cada setor econômico, determinando também mecanismos de desenvolvimento e transferência de tecnologia, criação e fortalecimento de capacidades e diretrizes orçamentárias.
A ECLP é de competência do Ministério do Meio Ambiente chileno, que compartilha sua coordenação com diferentes autoridades setoriais representativas dos setores responsáveis por maiores emissões de gases de efeito estufa ou maior vulnerabilidade às mudanças climáticas, incluindo Ministérios como o de Agricultura, Economia, Obras Públicas, Transportes e Comunicações, entre outros. Além disso, a lei estabelece também a criação de Comitês Regionais, responsáveis pela elaboração de planos regionais e comunais (divisões administrativas equivalentes aos estados e municípios brasileiros), os quais devem estar de acordo com todos os outros instrumentos a nível nacional
Não se trata de uma inovação da legislação chilena, pois é um conceito incorporado no Acordo de Paris, assim como as NDCs. O Brasil, inclusive, foi um dos primeiros países em desenvolvimento a definir sua NDC, atualizando seu plano em 2023 para corrigir as metas até 2025 e 2030 e reafirmando o objetivo de neutralidade de carbono até 2050[3]. No entanto, a legislação chilena se destaca ao setorizar a elaboração dos planos, estabelecendo exigências para a eficácia de cada um e vinculando um orçamento proporcional às necessidades de cada Ministério. Além disso, a regionalização na elaboração de planos específicos para diferentes divisões administrativas do país pode resultar em ganhos significativos para o planejamento em países de grande extensão territorial, como Chile e Brasil.
Além disso, a LMCC também cria o chamado Sistema Nacional de Acesso à Informação e Participação Cidadã sobre Mudanças Climáticas. Este sistema visa promover o caráter democrático do combate às mudanças climáticas, criando bases de dados sobre gases de efeito estufas e outros fatores climáticos de acesso público e de “linguagem compreensível”, possibilitando acesso da população em geral às informações pertinentes ao combate às mudanças climáticas.
Esse sistema também garante a participação da população chilena em processos de decisão referentes à elaboração, revisão e atualização dos instrumentos de gestão das mudanças climáticas. Ele se destaca por exigir que os órgãos que fazem parte da institucionalidade de combate ás mudanças climáticas atuem sempre da forma mais aberta e inclusiva às pessoas e agrupamentos, determinando ainda a adoção de “especial consideração com os setores e comunidades vulneráveis, aplicando um enfoque multicultural em de gênero”, o que traz um relevante e necessário caráter de análise social às medias institucionais[4].
Por fim, outra inovação relevante trazida pela LMCC é a alteração na legislação ambiental chilena no que diz respeito ao licenciamento ambiental e aos estudos correspondentes. A mudança promovida traz a exigência de incorporação da “variante de mudanças climáticas” aos projetos ou atividades que sejam submetidos ao Sistema de Evaluación de Impacto Ambiental (SEIA). Isso significa que, ao submeter um projeto de infraestrutura para avaliação de seus impactos ambientais, é necessário incluir a análise dos fatores que contribuem para os impactos ambientais, com o objetivo de identificar, prever e avaliar os efeitos adversos das mudanças climáticas em diferentes componentes do meio ambiente.
Além disso, a inclusão da variante de mudanças climáticas implica na necessidade de determinar ações, medidas e processos orientados à adaptação ou resiliência aos efeitos das mudanças climáticas durante a elaboração dos estudos de impacto ambiental. Seguindo os detalhados passos descritos no Regulamento do Sistema, chega-se à elaboração de Planos de Prevenção de Contingências e de Emergências, nos quais se deve identificar situações de risco que possam ser agravadas pelas mudanças climáticas ou áreas que podem vir a se tornar vulneráveis no futuro em razão desses fenômenos, propondo planos concretos para mitigar estes efeitos.
Em resumo, e sem esgotar os mecanismos implementados e detalhados, vê-se que a LMCC estabelece um verdadeiro novo regime normativo de adaptação às mudanças climáticas no Chile, abrangendo desde a institucionalidade e elaboração de políticas públicas até os requisitos para validação de estudos de impacto ambiental. Por ser uma lei recente, promulgada há pouco mais de dois anos, ainda é difícil medir seus impactos efetivos no combate às mudanças climáticas no Chile, mas sem dúvidas se apresenta como uma norma de referência, suficiente para inspirar e pautar algumas das discussões legislativas que o Brasil deve enfrentar se deseja se preparar e se adaptar aos efeitos das mudanças climáticas que estamos vendo cada vez mais.
REFERÊNCIAS:
CHILE. Ley N° 21455, Ley Marco de Cambio Climático. Santiago: Biblioteca del Congreso Nacional, 2022.
COMISSÃO do Senado aprova PL de plano de adaptação à mudança climática. Migalhas, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/407481/comissao-do-senado-aprova-pl-de-plano-de-adaptacao-a-mudanca-climatica. Acesso em: 03 de jun. de 2024.
GÓMEZ GONZÁLEZ, Rosa Fernanda. Chile: la Ley núm. 21.455, Ley Marco de Cambio Climático. Anuário de Direito Ambiental. Observatório de Políticas Ambientais, p. 153-170, 2023.
MONTES, Carlos. Por primera vez Chile tiene una ley contra el cambio climático: ¿en qué consiste esta norma? La Tercera, 13 de junho de 2022. Disponível em: https://www.latercera.com/que-pasa/noticia/por-primera-vez-chile-tiene-una-ley-contra-el-cambio-climatico-en-que-consiste-esta-norma/CKQL5W4BCZGOPJHBHVXGFNFXAA/. Acesso em: 03 de jun. de 2023.
MORAGA SARIEGO, Pilar. Una nueva era del derecho ambiental: La Ley Marco de Cambio Climático en Chile a 50 años de Estocolmo. Rev. derecho ambient. (Santiago), Santiago , n. 17, p. 1-6, jun. 2022 . Disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0719-46332022000100001&lng=es&nrm=iso>. accedido en 04 jun. 2024. http://dx.doi.org/10.5354/0719-4633.2022.67640. Acesso em: 03 de jun. de 2023.
TALANOA, 2023. NDC brasileira com metas corrigidas para 2025 e 2030. Nota Técnica 4. Série “NDC brasileira”. Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: institutotalanoa.org/documentos. Acesso em: 3 de jun de 2024.
[1] COMISSÃO do Senado aprova PL de plano de adaptação à mudança climática. Migalhas, 16 de maio de 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/407481/comissao-do-senado-aprova-pl-de-plano-de-adaptacao-a-mudanca-climatica. Acesso em: 03 de jun. de 2024.
[2] GÓMEZ GONZÁLEZ, Rosa Fernanda. Chile: la Ley núm. 21.455, Ley Marco de Cambio Climático. Anuário de Direito Ambiental. Observatório de Políticas Ambientais, p. 153-170, 2023. pp. 154-155
[3] TALANOA, 2023. NDC brasileira com metas corrigidas para 2025 e 2030. Nota Técnica 4. Série “NDC brasileira”. Rio de Janeiro, Brasil. Disponível em: institutotalanoa.org/documentos. Acesso em: 3 de jun de 2024.
[4] MORAGA SARIEGO, Pilar. Una nueva era del derecho ambiental: La Ley Marco de Cambio Climático en Chile a 50 años de Estocolmo. Rev. derecho ambient. (Santiago), Santiago , n. 17, p. 1-6, jun. 2022 . Disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0719-46332022000100001&lng=es&nrm=iso>. accedido en 04 jun. 2024. http://dx.doi.org/10.5354/0719-4633.2022.67640. Acesso em: 03 de jun. de 2023.
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