Eduardo Camargo Olyntho de Arruda
Em 20 de dezembro de 2023, a emenda constitucional nº 132/2023, que institui a reforma tributária, foi promulgada. O texto provém da proposta de emenda à Constituição nº 45, de 2019. Entre os avanços, sobressaem a criação da Cesta Básica Nacional de Alimentos com alíquota zero e do imposto seletivo sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente.
Além disso, também é mérito da reforma tributária a previsão de redução em 100% (cem por cento) das alíquotas de tributos de produtos hortícolas, frutas e ovos (Brasil, 2023). A alíquota zero, prevista para a cesta básica e para produtos hortícolas, frutas e ovos, alcançará o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) (Brasil, 2023).
Tanto o IBS quanto a CBS são inovações da reforma tributária. O IBS substituirá o Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Serviços (ISS), ao passo que a CBS unificará o Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) (Máximo, 2023).
Ainda, a reforma tributária trouxe a previsão de redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS de “alimentos destinados ao consumo humano” e de “composições para nutrição enteral ou parenteral e as composições especiais e fórmulas nutricionais destinadas às pessoas com erros inatos do metabolismo” (Brasil, 2023). A redução da alíquota em 60% destes tributos também alcançará produtos extrativistas vegetais in natura (Brasil, 2023).
Outrossim, a emenda constitucional nº 132/2023 traz a possibilidade de que o produtor rural pessoa física ou jurídica com receita anual inferior a R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais), atualizada anualmente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), opte por não ser contribuinte do IBS e da CBS (Brasil, 2023). Por fim, cumpre ressaltar o estabelecimento do regime de não cumulatividade plena ao IBS e à CBS, conforme artigo 156-A, §1º, inciso VIII e artigo 195, §16º, ambos da Constituição da República de 1988, o que impedirá a incidência de tributos acumulados na cadeia produtiva, reduzindo o custo final repassado ao consumidor.
Ante o exposto, nota-se que a reforma tributária tem o potencial de inaugurar uma política tributária nacional voltada à proteção do meio ambiente e ao estímulo do consumo de alimentos saudáveis e da produção desses alimentos pela agricultura familiar e de base orgânica e agroecológica, incentivando a economia da sociobiodiversidade.
No entanto, a redação da emenda constitucional nº 132/2023 compreende brechas que podem culminar na definição/manutenção de incentivos fiscais à agrotóxicos e produtos ultraprocessados.
Com efeito, o artigo 9º, §1º, inciso XI, da Constituição Federal de 1988 prevê redução de 60% da alíquota de tributos de insumos agropecuários e aquícolas. Nesse sentido, competirá à lei complementar que instituir o IBS e a CBS a definição de que bens serão incluídos no escopo de insumos agropecuários e aquícolas, o que dá abertura para a inclusão dos agrotóxicos na referida categoria.
Ademais, o artigo 9º, §1º, inciso VIII, da Constituição da República de 1988 traz a previsão de redução de 60% da alíquota de tributos de “alimentos para consumo humano”. Da mesma forma, caberá à supramencionada lei complementar definir que alimentos serão considerados como “alimentos para consumo humano”, de modo que há a possibilidade de inclusão dos alimentos ultraprocessados neste escopo.
Igualmente, o artigo 8º, parágrafo único, da Carta Magna expressa que lei complementar estabelecerá os produtos destinados à alimentação humana que comporão a Cesta Básica Nacional de Alimentos, sobre os quais as alíquotas do IBS e da CBS serão reduzidas a zero. Logo, há oportunidade para que sejam incluídos na cesta básica alimentos ultraprocessados.
E caberá, também, à lei complementar, definir quais serão os bens e serviços considerados “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, que suportarão a incidência do imposto seletivo, incluído pela reforma tributária no artigo 153, inciso VIII, da Constituição Federal de 1988.
Assim, é de extrema importância que na edição destas leis complementares se evite o estabelecimento de incentivos fiscais aos alimentos ultraprocessados, bem como se busque inseri-los no escopo de bens “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, visando a imposição de uma carga fiscal maior em cima desses alimentos, por meio do imposto seletivo, o que desestimularia o seu consumo e tornaria os alimentos saudáveis mais competitivos no mercado.
A importância dessas medidas decorre do fato de já existir um conjunto cabal de evidências científicas associando o consumo de alimentos ultraprocessados com o desenvolvimento de quadros de sobrepeso e obesidade e a aquisição de doenças crônicas não transmissíveis - diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e câncer, conforme aponta Carlos Monteiro, coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (Nupens/USP) (Bressan; Simoneto, 2023).
O enfrentamento da obesidade e de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil é inadiável. Em maio de 2023, o Ministério da Saúde, em conjunto com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), a Fiocruz e o Instituto Nacional do Câncer (Inca), publicou a cartilha “Por uma política tributária nacional justa, que combata a fome e garanta alimentação adequada, saudável e sustentável”.
O texto pontua que a obesidade praticamente dobrou entre 2006 e 2021, afirmando que se o sobrepeso e a obesidade continuarem a crescer na mesma velocidade da última década, haverá um custo de R$ 4,2 bilhões com tratamento de doenças crônicas não transmissíveis no SUS (Sistema Único de Saúde) e R$ 45,5 bilhões por anos de vida produtiva perdidos - mortalidade prematura (Brasil, 2023).
Além disso, segundo o documento, o consumo de alimentos ultraprocessados é responsável por quase 30% do aumento da obesidade de 2002 a 2009 e por cerca de 57 mil mortes prematuras (30 a 69 anos de idade) (Brasil, 2023).
Ainda, de acordo com Mahdi (2023), economista do Banco Mundial, “atualmente, mais de 50% dos adultos brasileiros estão acima do peso”, sendo que o sobrepeso e a obesidade importam num custo direto anual de R$ 1,5 bilhão para o tratamento de doenças não transmissíveis no SUS.
Diante disso, é necessário que na regulamentação da reforma tributária, que compreende a edição de leis complementares, haja a ação conjunta do Legislativo com o Executivo, em especial o Ministério da Saúde, na definição de que alimentos sofrerão onerações fiscais e quais obterão incentivos fiscais.
Nesse sentido, a política tributária para alimentos deve ser informada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira, documento produzido pelo Ministério da Saúde em 2014, que considera o nível e o propósito do processamento dos alimentos com base na classificação Nova.
A classificação Nova divide os alimentos em in natura ou minimamente processados; ingredientes culinários processados; alimentos processados e alimentos ultraprocessados.
O Guia Alimentar para a População Brasileira defende que o consumo de alimentos in natura e minimamente processados é a base para uma alimentação saudável e desincentiva o consumo de ultraprocessados.
Portanto, as alterações trazidas pela reforma tributária somente serão verdadeiros avanços na promoção e realização do direito humano à alimentação adequada se a definição dos alimentos sujeitos ao imposto seletivo e aos benefícios tributários estabelecidos for norteada pelo Guia Alimentar para a População Brasileira.
Referências:
BARBOSA, Catarina. Você conhece o Guia Alimentar para a População Brasileira? Brasil de Fato, 20 set. 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/09/20/voce-conhece-o-guia-alimentar-para-a-populacao-brasileira. Acesso em: 19 dez. 2023.
BETIM, Felipe. Impostos devem ser mais altos para alimentos ultraprocessados e açucarados? Jota, 28 jul. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/impostos-devem-ser-mais-altos-para-alimentos-ultraprocessados-e-acucarados-28072023. Acesso em: 19 dez. 2023.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional. Brasília: Presidência da República, 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc132.htm. Acesso em: 05 jan. 2023.
BRESSAN, Valentina; SIMONETO, Fernanda. Imposto extra sobre biscoitos, refrigerantes e salgadinhos? Especialistas em saúde defendemm medida. Estadão, 02 out. 2023. Disponível em: https://www.estadao.com.br/saude/imposto-extra-sobre-biscoitos-refrigerantes-e-salgadinhos-especialistas-em-saude-defendem-medida/. Acesso em: 19 dez. 2023.
MAHDI, Shireen. Tributação de alimentos ultraprocessados: vantagem para todos. Folha de São Paulo, 30 out. 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/shireen-mahdi/2023/10/tributacao-de-alimentos-ultraprocessados-vantagem-para-todos.shtml. Acesso em: 19 dez. 2023.
MÁXIMO, Weltton. Entenda a reforma tributária promulgada nesta quarta: proposta prevê unificação de impostos e fundo de R$ 60 bilhões. Agência Brasil, 20, dez. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-12/entenda-reforma-tributaria-promulgada-nesta-quarta. Acesso em: 05 jan. 2023.
Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Por uma política tributária nacional justa, que combata a fome e garanta alimentação adequada, saudável e sustentável, mai. 2023. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/politica_tributaria_justa_combata_fome.pdf. Acesso em: 19 dez. 2023.
MONTEIRO, Carlos; JOHNS, Paula. Comida não é tudo igual. O Globo, 05 jan. 2023. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/12/comida-nao-e-tudo-igual.ghtml. Acesso em: 05 jan. 2023.
MOURA, Jéssica. Consumo de ultraprocessados será favorecido com a reforma tributária?: setores da sociedade civil apontam que proposta do Senado é ambígua. Brasil de Fato, 03 nov. 2023. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/11/03/consumo-de-ultraprocessados-sera-favorecido-com-a-reforma-tributaria. Acesso em: 19 dez. 2023.
Promulgação da primeira fase da reforma tributária traz aspectos positivos e preocupantes. Oxfam Brasil, 21, dez. 2023. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/promulgacao-da-primeira-fase-da-reforma-tributaria-traz-aspectos-positivos-e-preocupantes/. Acesso em: 05 jan. 2023.
Reforma tributária tem implicações mais amplas do que adequação de impostos. Conjur, 11, jul. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-11/opiniao-alem-simplificacao-adequacao-impostos/. Acesso em: 05 jan. 2023.
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