Eduardo Camargo Olyntho de Arruda
O reconhecimento da senciência, ou seja, a capacidade de apresentar comportamentos intencionais e experimentar estados afetivos, aos animais não humanos foi por muito tempo motivo de debate científico.
No século passado, pesquisas científicas, como o The Animal Welfare Institute Quarterly, de 1987, já apontavam a essa faculdade dos animais não humanos ao indicarem que várias espécies além da humana possuem o diencéfalo, parte do cerébro responsável pelas emoções, bem desenvolvida (Singer, 2013, p. 18).
Contudo, a confirmação dessa capacidade ocorreu com a Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal, de 7 de julho de 2012 (Low, 2012), que constatou a senciência em todas as aves e mamíferos, e em muitas outras criaturas, incluindo polvos.
A verificação dessa faculdade demanda do intérprete do direito uma releitura da proteção jurídica dispensada a estas espécies. Aqui, pretende-se refletir sobre a repercussão do reconhecimento da senciência na objetividade jurídica dos crimes contra fauna e no que toca ao sujeito passivo destes crimes.
De modo efetivo, a senciência alterou o estatuto moral dos animais não humanos, levando boa parte da doutrina a considerar este grupo sujeito de direitos (Dias, 2005), afastando a concepção civilista de que o animal não humano é bem suscetível de movimento próprio, expressa no artigo 82 do Código Civil.
À vista disso, Gonçalves (2020, p. 324) assevera que esta mudança na visão da natureza jurídica do animal modificou a compreensão do bem jurídico tutelado pelo tipo penal de maus-tratos a animais não humanos, naturalmente o crime contra fauna mais eminente.
Este entendimento contrasta com a tradição, que percebe a preservação do meio ambiente categórico como o objeto jurídico dos crimes contra a fauna, em atenção ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, expresso no artigo 225, caput, da Constituição Federal, ou até mesmo o resguardo do animal humano, em razão da teoria do “link”, que informa que o abuso animal denuncia uma personalidade propensa à agressão de animais humanos vulneráveis, considerando que a crueldade animal costuma levar a atos de violência doméstica e familiar (ASCIONE; ARKOW, 1999; GONÇALVES, 2020, p. 322; PANCHIERI; CAMPOS, 2021, p. 5).
O Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 4.983/CE, trazendo uma possível resposta a este debate, já reconheceu a proibição da crueldade contra animais como norma autônoma, com objeto e valor próprios, embasada na senciência animal, constatada pela própria Constituição Federal ao se preocupar em vedar a crueldade animal em seu artigo 225, §1º, inciso VII:
37. Portanto, a vedação da crueldade contra animais na Constituição Federal deve ser considerada uma norma autônoma, de modo que sua proteção não se dê unicamente em razão de uma função ecológica ou preservacionista, e a fim de que os animais não sejam reduzidos à mera condição de elementos do meio ambiente. Só assim reconheceremos a essa vedação o valor eminentemente moral que o constituinte lhe conferiu ao propô-la em benefício dos animais sencientes. Esse valor moral está na declaração de que o sofrimento animal importa por si só, independentemente do equilibro do meio ambiente, da sua função ecológica ou de sua importância para a preservação de sua espécie. (ADI nº 4.983/CE, voto-vista do Ministro Luís Roberto Barroso, p. 42)
Cabe registrar que a mudança na visão da natureza jurídica também é percebida na atuação do legislador, que, em diversas ocasiões, já reconheceu expressamente ao animal não humano senciente o status de sujeito de direitos, bem como na jurisprudência dos tribunais de segundo grau (Gonçalves, 2020, p. 322-324).
Desse modo, parece acertado conceber, atualmente, a integridade física e mental do animal não humano como o objeto jurídico tutelado pelos crimes contra a fauna, considerando que a senciência dispensa a este ser valor moral intrínseco e status de sujeito de direitos, legitimando proteção autônoma dos seus interesses.
Consequentemente, esta visão senciocêntrica da objetividade jurídica dos crimes contra a fauna implica reconhecer que a vítima destes delitos é o animal não humano considerado em si mesmo, dado que possuidor do bem jurídico protegido (Panchieri; Campos, 2021, p. 5; Ríos Corbacho, 2019).
Esta compreensão deve afugentar então a concepção ultrapassada de matriz antropocêntrica de que o sujeito passivo dos crimes contra a fauna seria a coletividade, uma vez que o bem jurídico protegido seria o meio ambiente categorial, bem de natureza difusa, por ser de uso comum do povo, não podendo ser atribuído a um indivíduo em particular.
Referências:
ASCIONE, F.R., & ARKOW, P. (Eds.). Child abuse, domestic violence and animal abuse: Linking the circles of compassion for prevention and intervention. West Lafayette, IN: Purdue University Press, 1999.
BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm< Acesso em: 19 de jun. 2024.
DIAS, Edna Cardoso. Os animais como sujeitos de direitos. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7667/os-animais-como-sujeitos-de-direito. Acesso em: 19 jun. 2024.
GONÇALVES, Monique Mosca. A tutela penal dos animais no contexto da nova Lei nº 14.064/2020. Boletim Criminal Comentado n. 114, Ministério Público do Estado de São Paulo, out. 2020. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/BibliotecaDigital/Publicacoes_MP/Todas_publicacoes/Boletim%20Criminal%20Comentado%20%E2%80%93%20v.%203.pdf. Acesso em: 19 jun. 2024.
LOW, Philip. Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal. Francis Crick Conferência Memorial sobre a Consciência em animais humanos e não humanos, no Churchill College, Universidade de Cambridge. 2012.
PANCHERI, Ivanira. CAMPOS, Roberto Augusto de Carvalho. LEI SANSÃO. APONTAMENTOS SOBRE A LEI Nº 14.064, DE 29 DE SETEMBRO DE 2020. Unigranrio, v. 11, n. 1, 2021. Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-Dir UNIGRANRIO_v.11_n.1.04.pdf. Acesso em: 19 jun. 2024.
RÍOS CORBACHO, J. M. Los animales como posibles sujetos de derecho penal. Algunas referencias sobre los artículos 631 (suelta de animales feroces o dañinos) y 632 (malos tratos crueles) del código penal español. Revista de 32 Derecho penal de la Universidad de Friburg. Disponível em: https://perso.unifr.ch/derechopenal/assets/files/articulos/a_20080526_86.pdf. Acesso em: 19 jun. 2024.
SINGER, P. Libertação Animal: O clássico definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: WMF MARTINS FONTES, 2013. P. 3-35.
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