Sabrina Lehnen Stoll
A litigância climática tem emergido como um mecanismo poderoso de democracia direta, permitindo que cidadãos e organizações responsabilizem Estados e corporações por suas falhas na mitigação das mudanças climáticas. Essa abordagem, ao conectar diretamente as demandas populares às esferas de tomada de decisão, torna-se um instrumento vital para a proteção dos direitos humanos em um contexto de crise ambiental global.
A emergência da litigância climática como mecanismo de democracia direta reflete a crescente insatisfação da sociedade civil com as respostas insuficientes dos governos e empresas às mudanças climáticas. À medida que a crise ambiental se intensifica, cidadãos e organizações buscam ativamente novas formas de influenciar as políticas públicas e garantir o cumprimento das obrigações ambientais. Este movimento de base, ao utilizar o sistema judiciário para impor responsabilidades, transcende as limitações da democracia representativa tradicional, onde muitas vezes os interesses econômicos e políticos podem ofuscar as necessidades urgentes de proteção ambiental.
Neste contexto, a litigância climática serve como um canal direto para que a população participe efetivamente da governança ambiental. Ao levar casos aos tribunais, os cidadãos não apenas exigem a responsabilização dos Estados e corporações, mas também reafirmam seu direito à proteção contra os impactos adversos das mudanças climáticas, que afetam de maneira desproporcional as comunidades mais vulneráveis. Esse movimento tem sido impulsionado por uma compreensão mais ampla de que a justiça climática é inseparável da justiça social e dos direitos humanos, reconhecendo que as ações ou inações no campo climático têm repercussões diretas na vida das pessoas, particularmente nas populações marginalizadas.
Além disso, a litigância climática fortalece a participação cidadã, oferecendo uma plataforma onde vozes que muitas vezes são silenciadas no debate político tradicional podem ser ouvidas. Por meio desse processo, grupos e indivíduos podem influenciar as políticas públicas, pressionando por mudanças que alinhem as ações estatais e corporativas com os compromissos climáticos internacionais e os princípios fundamentais dos direitos humanos. Este fenômeno também evidencia uma transformação na maneira como as responsabilidades são entendidas em relação ao meio ambiente, onde a ação coletiva através dos tribunais pode forçar uma reavaliação das práticas governamentais e empresariais.
Em suma, a litigância climática, como expressão de democracia direta, não apenas responsabiliza os atores envolvidos, mas também redefine a relação entre o Estado, o meio ambiente e os cidadãos. Ao garantir que as obrigações ambientais sejam tratadas como uma questão de direitos humanos, esse mecanismo promove uma governança mais inclusiva e responsável, essencial para enfrentar os desafios impostos pela crise climática global.
Neste contexto, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (ECHR), frequentemente referido como “a consciência da Europa”, recentemente proferiu uma decisão sem precedentes ao concluir que a Suíça não cumpriu seus deveres de enfrentar as mudanças climáticas. Essa decisão marca a primeira vez que a Corte Europeia condena um Estado por não tomar medidas adequadas contra as mudanças climáticas, estabelecendo um elo indissociável entre a proteção dos direitos humanos e o cumprimento das obrigações ambientais. De acordo com Setzer, “a sentença constitui um marco crucial para os tribunais de todo o mundo na interpretação das obrigações de direitos humanos dos países com relação à ação climática” (Setzer apud Climate Case, 2024).
A decisão em questão é considerada sem precedentes, pois foi a primeira vez que o ECHR condenou um Estado por não tomar medidas suficientes para combater as mudanças climáticas. Nesse caso, a Suíça foi considerada culpada de não cumprir seus deveres de enfrentamento das mudanças climáticas, algo que tem implicações diretas para a proteção dos direitos humanos. O tribunal reconheceu que as mudanças climáticas representam uma ameaça grave aos direitos humanos, incluindo o direito à vida, à saúde e à proteção contra danos ambientais.
Ao condenar a Suíça, o tribunal estabeleceu um vínculo indissociável entre a proteção dos direitos humanos e o cumprimento das obrigações ambientais. Isso significa que, para garantir os direitos humanos, os Estados devem também tomar medidas eficazes para enfrentar as mudanças climáticas. A decisão é significativa porque redefine a responsabilidade dos Estados em relação às questões ambientais, tratando-as não apenas como questões de política interna, mas como obrigações ligadas aos direitos humanos universais.
Joana Setzer, pesquisadora no Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, destacou a importância dessa decisão ao afirmar que ela constitui "um marco crucial para os tribunais de todo o mundo". Segundo Setzer, essa sentença pode influenciar a maneira como outros tribunais, tanto na Europa quanto em outras regiões, interpretam as obrigações dos Estados em relação à ação climática. Em outras palavras, a decisão do ECHR não apenas estabelece um precedente na legislação ambiental e climática na Europa, mas também pode servir como referência para casos futuros em nível global, fortalecendo a conexão entre direitos humanos e proteção ambiental em tribunais ao redor do mundo.
O impacto dessa decisão não se limita à Suíça, mas se estende a todos os 46 países-membros do Conselho da Europa, com potenciais repercussões globais. A própria Corte Europeia, em sua decisão, mencionou que o caso estabeleceu “um precedente com consequências importantes” (ECHR, 2024). De acordo com Joana Setzer, do Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, “a histórica decisão da CEDH não apenas estabelece um precedente na legislação ambiental e climática, mas também destaca uma mudança radical no cenário jurídico global relacionado às mudanças climáticas” (Setzer, 2024).
Essa decisão histórica também pavimentou o caminho para que organizações possam apresentar novos casos em nome de indivíduos ou grupos afetados. Anja Grada, membro do movimento Climate Strike, destacou a importância dessa decisão ao afirmar: “pela primeira vez, um tribunal internacional reconhece que os direitos humanos incluem o direito à proteção climática. Está claro que a política climática da Suíça viola os direitos humanos mais fundamentais” (Grada, 2024).
Além disso, essa decisão reforça a ideia de que a ação judicial pode ser uma ferramenta poderosa na luta contra as mudanças climáticas. Como observa a WWF, “a vitória das idosas suíças é uma vitória para todas as gerações” (WWF, 2024), o que demonstra o alcance intergeracional e o impacto duradouro que a litigância climática pode ter. Nesse sentido, o papel das ONGs e movimentos sociais na promoção da justiça climática tem sido crucial, pois essas entidades não apenas representam as vozes daqueles que são diretamente afetados, mas também mobilizam a sociedade em torno da questão climática.
A inclusão do direito à proteção climática dentro do escopo dos direitos humanos reflete um avanço significativo na compreensão das obrigações dos Estados em relação ao meio ambiente. Como apontado por Savaresi e Auz (2023), “a litigância climática tem o potencial de transformar a relação entre os Estados e seus cidadãos, ao forçar os governos a adotarem políticas mais ambiciosas e eficazes de mitigação e adaptação climática”.
Em um contexto mais amplo, a litigância climática pode ser vista como uma manifestação de democracia direta, na medida em que permite a participação ativa dos cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas. Ao recorrer aos tribunais, as pessoas exercem um controle direto sobre as ações do Estado, garantindo que as suas obrigações ambientais sejam cumpridas. Isso é particularmente relevante em um cenário global onde as mudanças climáticas representam uma ameaça existencial e onde as respostas governamentais têm sido, em muitos casos, insuficientes.
Por fim, a decisão do ECHR também destaca a necessidade de uma abordagem mais integrada e coordenada à governança climática, onde os direitos humanos e a proteção ambiental são vistos como partes interdependentes de uma mesma agenda. A evolução da jurisprudência em torno da litigância climática sugere que estamos testemunhando uma transformação no entendimento de como os direitos humanos podem e devem ser protegidos em um mundo cada vez mais impactado pelas mudanças climáticas.
Essa mudança de paradigma, conforme argumenta Kotzé (2022), “impõe aos Estados a obrigação de reavaliar suas políticas ambientais e climáticas, assegurando que estas estejam alinhadas não apenas com os compromissos internacionais, mas também com as expectativas e os direitos dos seus cidadãos”. Portanto, a litigância climática não apenas fortalece a democracia direta, mas também redefine o papel dos tribunais como guardiões dos direitos humanos em face da emergência climática.
Essa nova perspectiva evidencia a necessidade de uma governança climática que integra a justiça ambiental com a justiça social, reconhecendo a interdependência entre os direitos humanos e a proteção ambiental. Ao promover a responsabilização dos Estados e das corporações através dos tribunais, a litigância climática não só assegura que as políticas ambientais atendam aos compromissos globais, mas também garante que as vozes dos cidadãos sejam ouvidas e respeitadas. Desse modo, os tribunais emergem como atores cruciais na construção de uma ordem jurídica que reflete as demandas urgentes de uma sociedade em busca de sustentabilidade e equidade, reafirmando o papel da democracia direta como um meio essencial para enfrentar os desafios da crise climática global.
REFERENCIAS
Climate Case. European Court of Human Rights ruling on Switzerland’s climate obligations. Climate Case, 2024.
ECHR. European Court of Human Rights: Judgement on Climate Change Obligations. European Court of Human Rights, 2024.
Grada, Anja. The Significance of the ECHR Decision on Climate Protection as a Human Right. Climate Strike, 2024.
Kotzé, Louis J. "Transformative Environmental Constitutionalism and Climate Change Litigation". Revista de Direito Ambiental, v. 22, n. 2, p. 45-67, 2022.
Savaresi, Annalisa; Auz, Julien. Human Rights and Climate Change Litigation: Opportunities and Challenges. Journal of Environmental Law, v. 35, n. 1, p. 1-20, 2023.
Setzer, Joana. The Impact of the ECHR Ruling on Global Climate Litigation. Grantham Research Institute on Climate Change and the Environment, 2024.
WWF. Switzerland Climate Case: A Victory for All Generations. World Wildlife Fund, 2024.
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