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Estaria o Sistema Interamericano de Direitos Humanos caminhando rumo à uma leitura ecológica da proteção ambiental?

O constitucionalismo ambiental hodierno na América Latina se caracteriza como um movimento em níveis múltiplos e em diálogo com o plano internacional. Nesse sentido, para além dos textos constitucionais e dos marcos normativos internacionais globais em matéria ambiental, uma análise do constitucionalismo na América Latina deve considerar também o Protocolo de San Salvador, adicional ao Pacto de San Jose da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos), documentos que fazem parte do Sistema regional Interamericano de proteção dos direitos humanos.


O texto original de 1969 do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Interamericana de Direitos Humanos) não estabelecia nenhum direito ao meio ambiente. Foi somente a partir do Protocolo Adicional de San Salvador de 1988 que o sistema interamericano passou a tutelar o direito humano ao meio ambiente saudável nos seguintes termos[1]: “Toda persona tiene derecho a vivir en un medio ambiente sano y a contar con servicios públicos básicos” e “Los Estados Partes promoverán la protección, preservación y mejoramiento del medio ambiente[2].


O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos tem como órgãos, dentre outros mecanismos de monitoramento e implementação dos Direitos Humanos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.


A Comissão tem como principal função promover a observância e a proteção dos direitos humanos (dentre eles o direito ao meio ambiente sano) no continente americano, cabendo-lhe também elaborar estudos, relatórios e recomendações aos Estados-partes acerca de medidas necessárias à proteção dos direitos previstos pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos, bem como solicitar aos governos informações acerca da implementação da Convenção e submeter relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos[3]. Se verificada eventual violação a direito consagrado pelo Pacto de San Jose e na ausência de solução amistosa com o Estado denunciado, a Comissão produzirá um relatório, do qual devem constar os fatos, conclusões sobre o caso e recomendações ao Estado-parte. Não tendo sido solucionado pelas partes dentro de três meses, o caso pode ser encaminhado pela Comissão à Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurisdicional do sistema regional que possui competência consultiva[4] e contenciosa[5], sendo composto por juízes nacionais de países membros da OEA e eleitos pelos Estado-partes. Em caso de violação reconhecida pela Corte, esta determinará ao Estado violador a adoção das medidas necessárias à restauração do direito violado, o que pode incluir condenação ao pagamento de indenização à vítima[6].


Em que pese reconhecer o direito ao ambiente sano, o Protocolo Facultativo de San Salvador também declara que somente as violações a direitos sindicais, previstos no artigo 8, e direitos ligados à educação, descritos no artigo 13 do Protocolo, podem ser objeto de petição individual à Comissão Interamericana. Sendo assim, em matéria ambiental, tanto a Comissão quanto a Corte Interamericana vêm realizando historicamente a proteção ambiental de maneira indireta ou por “ricochete” ou ainda greening[7]. Essa proteção incidental ou indireta[8] significa, portanto, que a tutela do meio ambiente ocorre através do reconhecimento de outros direitos, a exemplo do direito ao território, direito à preservação da saúde e do bem-estar, direito à vida, liberdade e segurança[9], dentre outros[10].


Vale citar trecho da decisão da Corte que reconhece a interdependência entre direitos humanos e meio ambiente e avança no sentido de proteger o meio ambiente em razão de sua “importância para os outros organismos vivos com os quais o planeta é compartilhado”[11]:


Esta Corte considera importante resaltar que el derecho al medio ambiente sano como derecho autónomo, a diferencia de otros derechos, protege los componentes del medio ambiente, tales como bosques, ríos, mares y otros, como intereses jurídicos en sí mismos, aún en ausencia de certeza o evidencia sobre el riesgo a las personas individuales. Se trata de proteger la naturaleza y el medio ambiente no solamente por su conexidad con una utilidad para el ser humano o por los efectos que su degradación podría causar en otros derechos de las personas, como la salud, la vida o la integridad personal, sino por su importancia para los demás organismos vivos con quienes se comparte el planeta, también merecedores de protección en sí mismos . En este sentido, la Corte advierte una tendencia a reconocer personería jurídica y, por ende, derechos a la naturaleza no solo en sentencias judiciales sino incluso en ordenamientos constitucionales[12].

 

Observa-se que em termos de Sistema Interamericano a proteção ambiental passou por uma significativa evolução nas últimas décadas, pois se antes o meio ambiente era protegido apenas de maneira indireta, isto é, desde que verificado dano a algum outro direito reconhecido pelo Pacto de San José da Costa Rica ou seus protocolos adicionais, atualmente, é considerado um bem autônomo e interdependente em relação aos demais direitos humanos. Nesse sentido, a OC 23/2017 deve ser considerado um grande marco para o sistema regional.


Em 2020, a Corte Interamericana registrou uma decisão reconhecendo a proteção dos direitos dos povos indígenas no caso da Comunidade Indígena da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) vs. Argentina, tendo sido o primeiro caso da Corte sobre os direitos à água, alimentação, meio ambiente saudável e identidade cultural[13].


Segundo a ONU, em termos de proteção internacional do meio ambiente na América Latina, merece destaque também a Carta Democrática Interamericana (2001)[14], documento que reconhece que “um meio ambiente saudável é indispensável para o desenvolvimento integral do ser humano, o que contribui para a democracia e a estabilidade política” e que “O exercício da democracia facilita a preservação e o manejo adequado do meio ambiente”. Sendo assim, segundo o documento, mostra-se essencial para os estados americanos a implementação de políticas e estratégias de proteção do meio ambiente, “respeitando os diversos tratados e convenções, para alcançar um desenvolvimento sustentável em benefício das futuras gerações”[15].


Em suma, a partir da Opinião Consultiva (OC) 23 de 2017 (apresentada pela Colômbia em março de 2016[16]) a Corte Interamericana reconheceu, pela primeira vez, a proteção do meio ambiente como um direito autônomo com "valor intrínseco" e que representa um valor jurídico em si mesmo, o que significa que o meio ambiente merece ser protegido mesmo na ausência de uma certeza ou evidência sobre o risco a outros direitos humanos[17].



[1] José Adércio Leite SAMPAIO. Proteção do Meio Ambiente no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. RDU, Porto Alegre, Volume 14, n. 77, 2017, 27-46, set-out 2017.

[2] United Nations. Protocolo adicional a la convencion americana sobre derechos humanos en materia de derechos economicos, sociales y culturales. San Salvador, El Salvador, 17 nov. 1988.

[3] A Comissão também é responsável por examinar as comunicações encaminhadas por individuo, grupos de indivíduos ou entidade não governamental que denunciem violação a direito consagrado pela Convenção por algum Estado-parte, realizando juízo de admissibilidade com base nos requisitos estabelecidos no art. 46 da Convenção. A partir disso, a Comissão pode solicitar informações aos Estados denunciados e, conforme o caso, arquivar a comunicação ou realizar investigação. Para aprofundamentos cfr. Leura DALLA RIVA; Cátia Rejane Mainardi LICZBINSKI. A tutela jurídica dos refugiados ambientais: o caso haitiano e o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Revista Paradigma, Ribeirão Preto/SP, a. XXIII, v. 27, n. 1, p. 161-189, Jan/abr. 2018.

[4] No que diz respeito às atribuições consultivas da Corte, qualquer membro da OEA — parte ou não da Convenção — pode solicitar parecer da Corte sobre interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos humanos aplicável aos Estados americanos. Além disso, a Corte pode apresentar parecer acerca da compatibilidade entre legislações nacionais e instrumentos internacionais, efetuando, assim, o chamado controle da convencionalidade das leis. Ibidem. 

[5] Já no plano contencioso, destaca-se que a competência da Corte abrange, como já mencionado, o exame de casos que envolvam violação de direito protegido pela Convenção por parte de um Estado-parte. Destaca-se que para que haja julgamento pela Corte é essencial que os Estados tenham reconhecido a jurisdição da Corte através da Convenção de 1969. Ibidem.

[6] Importante salientar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos pode analisar somente casos submetidos pela Comissão Interamericana ou por algum Estado-parte, não havendo previsão de legitimidade de indivíduos, os quais poderão apresentar suas denuncias perante a Comissão, nos termos dos artigos 46, 48 e 61 da Convenção Americana. Ibidem.

[7] Nesse sentido, Valério Mazzuoli define a proteção por “ricochete” como “A técnica da proteção ambiental pela via reflexa (ou "por ricochete") se desenvolve a partir da concepção de que dentro da estrutura do atual direito internacional do meio ambiente a proteção da biosfera mostra-se eficaz por intermédio da indireta, porém, necessária proteção dos seres humanos”. Já o fenômeno do greening seria aquilo que ocorre quando “se tenta (e se consegue) proteger direitos de cunho ambiental nos sistemas regionais de direitos humanos, que são sistemas aptos (em princípio) a receber queixas ou petições que contenham denúncias de violação a direitos civis e políticos”. Valério de Oliveira MAZZUOLI; Gustavo de Faria Moreira TEIXEIRA. O Direito Internacional do Meio Ambiente e o Greening da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Revista Direito GV, São Paulo, jan-jun 2013, pp. 208-210.

[8] Dentre os casos práticos julgados que envolveram esse tipo de proteção indireta, destaca-se que:  “Na esfera da Corte Interamericana, o primeiro caso em que foi abordada a temática ambiental, embora de forma indireta, foi o que versou sobre a concessão irregular de exploração madeireira em terras indígenas, na Comunidade Awas Tingni Mayagna (Sumo) vs. Nicarágua (Sentença de 31 de agosto de 2001. Série C, n. 79). Posteriormente, a Corte ainda apreciou questões de direitos humanos envolvendo matéria ambiental, também de modo incidental, nos casos Comunidade N'djuka Maroon, de Moiwana, em Moiwana vs. Suriname (Sentença de 15 de junho de 2005. Série C, n. 124, parágrafo 86); Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai (Sentença de 17 de junho de 2005. Série C, n. 125); Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai (Sentença de 29 de março de 2006. Série C, n. 146); Caso Comunidad Saramaka vs. Suriname (Sentença de 28 de novembro de 2007. Série C, n. 172), entre outros” Leila BIJOS; Carmem Elisa HESSEL. Sistema Interamericano de Direitos Humanos: Proteção ao Meio Ambiente. Revista de Direitos Humanos em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 78-98, 2016.

[9] Ibidem.

[10] Assim determina o Protocolo: “En el caso de que los derechos establecidos en el párrafo a) del artículo 8 y en el artículo 13 fuesen violados por una acción imputable directamente a un Estado Parte del presente Protocolo, tal situación podría dar lugar, mediante la participación de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, y cuando proceda de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, a la aplicación del sistema de peticiones individuales regulado por los artículos 44 a 51 y 61 a 69 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos” United Nations. Protocolo adicional a la convencion americana sobre derechos humanos en materia de derechos economicos, sociales y culturales, cit.

[11] Raquel Santos de ALMEIDA. Opinião consulta OC-23/17 meio ambiente e direitos humanos. Núcleo Interamericano de Direitos Humanos. Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. 2019. Disponível em: https://nidh.com.br/oc23. Acesso em: 10 Abr. 2022.

[12] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinión Consultiva OC-23/17. 15 nov. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_23_esp.pdf. Acesso em 29 set. 2023.

[13] United Nations. Harmony with Nature. Rights of Nature. 2023. Disponível em: http://www.harmonywithnatureun.org/rightsOfNature/. Acesso em: 29 set. 2023.

[14] United Nations. Constitucionalismo Ambiental en América Latina. Cit.

[15] Organização dos Estados Americanos. Carta Democrática Interamericana. Disponível em:  http://www.oas.org/OASpage/port/Documents/Democractic_Charter.htm. Acesso em: 29 set. 2023.

[16] Sobre o caso, vale citar: “A Opinião Consultiva resultou da solicitação elaborada pelo Estado da Colômbia em 14 de março de 2016. A República da Colômbia solicitante, com fundamento no artigo 64.11 da Convenção Americana e de acordo com o previsto nos artigos 70.1 e 70.22 do Regulamento, apresentou pedido de parecer consultivo sobre as obrigações dos Estados em relação ao ambiente no âmbito da proteção e garantia dos direitos à vida e à segurança integridade pessoal, a fim de que o Tribunal determinasse de que maneira o Pacto de São José da Costa Rica deveria ser interpretado frente a risco (iminente) de que a construção e uso das novas grandes obras de infraestrutura afetassem gravemente o ambiente marinho na Região do Grande Caribe e, por conseguinte, o habitat humano essencial para o pleno gozo e exercício dos direitos dos habitantes de as costas e / ou ilhas de um Estado Parte (o que poderia suscitar até mesmo o deslocamento de populações costeiras) no Pacto, à luz das normas ambientais consagrados nos tratados e no direito internacional consuetudinário aplicável entre Respectivos Estados” Raquel Santos de ALMEIDA. Opinião consulta OC-23/17 meio ambiente e direitos humanos. Disponível em: https://nidh.com.br/oc23. Acesso em: 10 Abr. 2022. Para saber mais sobre a decisão do caso, confira: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Parecer Consultivo 23 sobre Meio Ambiente e Direitos Humanos. 2017. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/infografia-por.pdf. Acesso em: 29 set. 2023.

[17] Para aprofundamentos sobre o tema cfr. Sophie THÉRIAULT. Environmental justice and the Inter-American Court of Human Rights. In: Louis KOTZÉ; Anna GREAR (Ed.). Human Rights and the Environment. Edward Elgar, Northampton, USA, 2015, p. 309.

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