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Deveria o Ecocídio ser tipificado como crime internacional?

Foto do escritor: Eduardo Schneider LerschEduardo Schneider Lersch

Atualizado: 17 de jul. de 2024

Eduardo Schneider Lersch


Recentemente uma campanha para tornar o crime de Ecocídio como o quinto crime internacional ganhou apoio de importantes setores da sociedade. Conforme a preocupação com o combate às mudanças climáticas ganham força, várias nações passaram a implementar essa tipificação em seus ordenamentos domésticos. França, Rússia, Ucrânia, Bélgica, Chile[1] são alguns dos países que incluíram o crime de Ecocídio no rol de imputações criminais, enquanto Brasil, Itália, Escócia, Holanda, entre outros, possuem propostas legislativas em andamento para tipificar esse ilícito[2].


A tendência parece acompanhar o crescente interesse sobre litigância climática no âmbito civil, que vem apresentando resultados e recebendo atenção de importante setores da política e academia. Aprimorar responsabilização no âmbito criminal de perpetradores de graves crimes ambientais é igualmente necessário.


Contudo, é preciso reconhecer que, no âmbito criminal, a adoção de processos judiciais não vem se destacando pela sua eficácia. Casos importantes são raros, e crimes sistêmicos como o de Ecocídio dificilmente são encontrados, a despeito da atividade ilícita ambiental fazer parte de um submundo criminal que cresce cada vez mais[3]. Quando muito, esses ilícitos são absorvidos por outras atividades que recebem o foco da atuação repressiva do Estado.


É diante de circunstâncias como essas que a campanha encabeçada desde 2017 pela fundação Stop Ecocide passou a liderar esforços globais para reconhecer o crime de ecocídio recentemente proposto no âmbito do direito penal internacional. Reunindo especialistas e ativistas em diversas nações, a fundação apresentou uma definição legal do crime de ecocídio para que seja inclusa no Estatuto de Roma, atraindo a competência do Tribunal Penal Internacional:


“Para os fins deste Estatuto, "Ecocídio" significa atos ilegais ou arbitrários cometidos com o conhecimento de que há uma probabilidade substancial de que esses atos causem danos graves e generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente.” (tradução nossa)

Em sua justificativa, a fundação esclarece que sanções civis podem fazer parte do cálculo econômico de empresas poluentes e demais agentes de degradação ambiental, mas a perspectiva de punição na seara criminal reforça:


  • Dissuasão: os tomadores de decisão de alto nível no governo e no setor serão muito mais cuidadosos e conscientes sobre o que assinam, enquanto os investidores e as seguradoras se afastarão de projetos que possam ser considerados criminosos;

  • Reforço das leis existentes: nomear os piores danos como crimes ajudará todas as leis ambientais a serem levadas a sério;

  • Igualdade de condições: aqueles que estão fazendo a coisa certa não terão mais dificuldades, enquanto os menos escrupulosos repassam os danos e seus custos para a natureza, as comunidades e os governos;

  • Apoio a acordos multilaterais: com a base obrigatória do direito penal, será mais fácil aderir a acordos não vinculativos (Paris, Kunming-Montreal);

  • Mudança cultural: o direito penal traça linhas morais e ajudará a criar um tabu social saudável em relação aos danos em massa à natureza. (tradução nossa)[4][5]


Caso aprovada e ratificada pelos Estados-membros signatários do Estatuto de Roma, o crime de ecocídio seria incluso no rol de crimes internacionais considerados como os mais hediondos pela humanidade, juntamente com: crimes de guerra, crimes de agressão, crimes contra a humanidade e genocídio. Ressalte-se o estatuto contempla crimes contra o meio ambiente como crimes de guerra[6], mas a procuradoria atuante perante o TPI nunca investigou ou processou indivíduos por ilícitos ambientais[7].


A estratégia é vista como uma forma de diminuir a impunidade, uma vez que a jurisdição do TPI é chancelada pelos Estados-membros, o que significa que uma nação ratificadora tem o dever de prender indivíduos que se encontram em seu território, caso uma ordem de prisão seja emanada pelo tribunal. Além disso, é um meio de regulamentar ordenamentos jurídicos domésticos, para que adotem as medidas necessárias para evitar e reprimir crimes dessa natureza.


A primeira campanha dessa natureza surgiu na década de 1970, em uma resposta ao que ocorria na Guerra do Vietnã, sobretudo pelas novas táticas de guerra empregadas pelo governo dos Estados Unidos da América decorrente do uso de armas químicas que causaram enorme devastação ambiental, deixando sequelas ecológicas e humanas na região que perduraram até hoje. Richard A. Falk, o primeiro a propor uma definição legal[8] e a inclusão de Ecocídio como um crime internacional, resumiu o sentimento da época sobre a guerra:


“Na Indochina, durante a última década, temos o primeiro exemplo moderno em que o meio ambiente foi selecionado como um alvo "militar" apropriado para uma destruição abrangente e sistemática. Tal ocorrência não reflete apenas a depravação das sensibilidades de alta tecnologia dos planejadores de guerra. Ela segue a lógica demoníaca da guerra de contrainsurgência, especialmente quando a ameaça insurgente é formidável e está localizada em um local tropical.”

A definição legal proposta por Falk foi debatida em vários comitês internacionais, incluindo aquele que foi precursor da Convenção de Roma de 1998, que originou o atual Estatuto de Roma, instaurando o TPI como o primeiro tribunal internacional permanente[9].  Embora não tenha encontrado muita resistência das partes (só 3 países manifestaram-se contra a inclusão do crime do ecocídio no documento final[10]), ele acabou excluído do estatuto.


A recente campanha encabeçada pela fundação Stop Ecocide ganhou apoio da Ucrânia e aliados[11], a fim de levar a Rússia a julgamento por mais essa imputação, em decorrência de sua invasão, ocupação e destruição de significante parte do território ucraniano[12]. Diferemente da definição proposta por Falk, a proposta em discussão traz uma maior abrangência para a imputação de ecocídio, não tendo relação somente em períodos de guerra, podendo atingir líderes políticos e corporativos cúmplices em grandes crimes ambientais, como desmatamento, perfuração e mineração ilegal, contaminação e/ou poluição em larga escala, etc.


Há ainda muitas etapas para viabilizar a proposta e, em caso de aprovação, eventual ratificação pode demorar décadas. Contudo, é presumível que sua inclusão no rol de crimes internacionais teria impacto significante, ainda que simbólico. A sua repercussão afetará a abordagem da temática perante as nações ratificadoras, mesmo que a persecução desse crime internacionalmente encontre diversas limitações. Milena Sterio explica que:


“Mesmo que o ecocídio fosse processado no TPI, esses processos enfrentariam limitações inerentes à estrutura do Estatuto de Roma: primeiro, a jurisdição territorial e temporal do TPI é limitada; segundo, todos os casos levados ao TPI estão sujeitos ao complexo limiar de gravidade, bem como ao regime de complementaridade do TPI; terceiro, o TPI só processa pessoas físicas; e, por fim, os delitos cometidos por empresas permaneceriam fora do alcance investigativo e processual do TPI.65 Em suma, embora o julgamento de crimes ambientais ou ecocídio no TPI continue sendo uma ideia atraente, esses processos provavelmente teriam efeito limitado.”[13] (tradução nossa)

A inclusão do ecocídio como um crime internacional é um passo fundamental para lidar com os danos graves e muitas vezes irreversíveis infligidos aos ecossistemas do nosso planeta. Ao reconhecer o ecocídio nesse nível, a comunidade internacional reconhece a gravidade da destruição ambiental e seus impactos de longo alcance sobre a biodiversidade, a saúde humana e o clima global, não apenas estabelecendo um precedente para a responsabilização, mas também serve como um poderoso impedimento contra ações corporativas e governamentais que levam à devastação ambiental. Isso cria uma estrutura legal por meio da qual os atos mais flagrantes de danos ambientais podem ser processados, promovendo assim uma cultura saudável de governança e responsabilidade ambiental.


Entretanto, a eficácia do combate ao ecocídio também depende da participação ativa dos sistemas jurídicos nacionais. As jurisdições nacionais devem integrar o ecocídio em suas estruturas de justiça criminal, garantindo que os perpetradores sejam responsabilizados tanto em nível local quanto internacional. Essa abordagem dupla reforça o princípio de que a proteção ambiental é uma responsabilidade compartilhada, exigindo uma ação coesa além das fronteiras.


Além do processo criminal, o litígio civil desempenha um papel fundamental no enfrentamento das consequências do ecocídio. As ações civis podem oferecer caminhos para que as comunidades afetadas busquem indenização e reparação por danos ambientais. Esse aspecto da litigância climática e ambiental garante que as vítimas de ecocídio não fiquem sem recurso e que os poluidores arquem com o ônus financeiro da restauração. Além do enfoque adicional à necessidade de responsabilização ambiental, envia-se uma mensagem clara de que a destruição desenfreada de ecossistemas é intolerável. Tal medida nos aproxima de um futuro em que a proteção ambiental é parte integrante de nossa estrutura jurídica e moral, garantindo a preservação de nosso planeta para as próximas gerações.

 

Notas e Referências


[2] Uma lista mais completa que mostra a definição estabelecida em texto legais pode ser encontrada aqui : https://ecocidelaw.com/existing-ecocide-laws/#:~:text=On%20November%208th%202023%2C%20the,%2C%20known%20as%20“ecocide”. Acesso em 15 jul 2024.

[6] Artigo 8 - Crimes de Guerra 1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes. 2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crimes de guerra": [...] iv) Lançar intencionalmente um ataque, sabendo que o mesmo causará perdas acidentais de vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos em bens de caráter civil ou prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa;

[7] STERIO, Milena. Crimes Against the Environment, Ecocide, and the International Criminal Court. Case Western Reserve Journal of International Law Vol. 56, 2024, p. 227. Disponível em: https://scholarlycommons.law.case.edu/jil/vol56/iss1/12

[8] Na presente Convenção, ecocídio significa qualquer um dos seguintes atos cometidos com a intenção de perturbar ou destruir, no todo ou em parte, um ecossistema humano: a) O uso de armas de destruição em massa, sejam elas nucleares, bacteriológicas, químicas ou outras; b) O uso de herbicidas químicos para desfolhar e desmatar florestas naturais para fins militares; c) O uso de bombas e artilharia em quantidade, densidade ou tamanho tais que prejudiquem a qualidade do solo ou aumentem a possibilidade de doenças perigosas para os seres humanos, animais ou plantações; d) O uso de equipamento de escavação para destruir grandes extensões de florestas ou terras agrícolas para fins militares; e) O uso de técnicas projetadas para aumentar ou diminuir as chuvas ou modificar o clima como arma de guerra; f) A remoção forçada de seres humanos ou animais de seus locais habituais de moradia para acelerar a busca de objetivos militares ou industriais. (tradução nossa). Cfr. FALK, Richard A. Environmental Warfare and Ecocide — Facts, Appraisal, and Proposals. Bulletin of Peace Proposals 4, 1973, p. 21, https://doi.org/10.1177/096701067300400105 

[9] STERIO, op. cit., p. 224-226

[10] Foram eles os Estados Unidos da América, Reino Unido e Holanda. Cfr. STERIO, op. cit., p. 227

[12] Milena Sterio. Crimes Against the Environment, Ecocide, and the International Criminal Court. Case Western Reserve Journal of International Law Vol. 56, 2024, p. 227.

[13] STERIO, op. cit., p. 232.



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