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Desconstruindo a teoria do bem jurídico-penal: Perspectivas da Criminologia Verde e Crítica

Luiz Fernando Rossetti Borges


Em observância a tratados ratificados pelo Brasil, notadamente a Convenção de Diversidade Biológica (Brasil, 1998), estabelecida durante a Eco-92 (Brasil, 1998), e a criação do Protocolo de Quioto em 1997, que constitui um tratado complementar à à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (Brasil, 2005), os textos constitucionais começaram a internalizar o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado e outros direitos transindividuais. Dentre esses novos direitos protegidos pela Constituição da República do Brasil, o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi inclusive elevado como objetivo último do desenvolvimento nacional, dado a sua natureza intergeracional e partilhada. Seguindo essa tendência, também surgiu a emergência para proteger o meio ambiente através do Direito Penal, exigindo esforços dogmáticos redobrados para a reconfiguração das teorias do crime e da pena. O Direito Penal Ambiental é um dos principais campos afetados nas últimas três décadas pelas normativas de Direito Ambiental acolhidas pelo legislador constitucional em razão dos tratados e convenções ratificados pelo Brasil, observando-se o aumento dos tipos penais que protegem o meio ambiente.


Dentre os institutos afetados encontra-se o bem jurídico-penal. Ele é fruto do pensamento liberal do século XVIII, marcando o ritmo para um Estado de Direito, numa perspectiva abstencionista do Estado em referência às liberdades públicas e aos direitos políticos, traduzidos pelo valor da liberdade. Nesse cenário, o campo da punição também foi afetado, ocasião em que o Direito também teve que se desenvolver para encontrar limites e diretrizes mais claras para a persecução estatal. Assim, dentre os institutos jurídicos que foram concebidos nesse período está o do bem jurídico-penal, que, para Muñoz Conde, congrega os “bens” que são os pressupostos existenciais necessários à autorrealização humana, como “jurídicos”, na medida em que esses pressupostos são protegidos pelo direito (2001, p. 90). Claus Roxin, afirma que os bens jurídicos seriam “circunstâncias reais dadas ou finalidades necessárias para uma vida segura e livre, que garanta todos os direitos humanos e civis de cada um na sociedade ou para o funcionamento de um sistema estatal que se baseia nestes objetivos” (2013, p. 18/19).


Há duas concepções fundamentais sobre o bem jurídico, uma primeira informa que o “bem jurídico vem a ser um ente (dado ou valor social) material ou imaterial haurido do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual reputado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem em sociedade” (Prado, 2013, p. 52); e uma segunda que “deve estar sempre em compasso com o quadro axiológico (Werbild) vazado na Constituição e com o princípio do Estado democrático e social de Direito” (Prado, 2013, p. 52).


No âmbito do Direito Penal, Hassemer (2007, p. 97) defende que a teoria do bem jurídico propõe evitar a intervenção do Estado sobre os cidadãos, uma vez que “o direito penal é uma lei que estabelece limites ao combate ao crime e a Constituição formula limites à intervenção, também para o Estado que exerce o poder punitivo” (tradução livre). Ou seja, para Hassemer é a Constituição que tem a função de escolher os bens jurídicos a serem especialmente protegidos, legitimando-os, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais do cidadão contra o poder punitivo do Estado. A teoria do bem jurídico, tal como é percebida, foi construída a partir da conquista de direitos fundamentais de primeira dimensão para o cidadão, na tentativa de controlar o poder punitivo do Estado, ou seja, em torno da representação do indivíduo. Daí que a teoria do bem jurídico seja considerada um critério de criminalização. Para Tavares (2018, p. 90), “a criminalização de uma conduta deve sempre pressupor uma lesão ou um perigo de lesão de bem jurídico”.


Muñoz Conde (2001, p. 92/93) argumenta que a determinação do bem jurídico a ser protegido em uma dada sociedade pressupõe uma avaliação que é historicamente condicionada, na medida em que os legisladores vão submeter à proteção penal as necessidades sociais e concepções morais dominantes. A elevação dessas ideias dominantes à proteção penal – e consequentemente ao status de bem jurídico – ocorre ao mesmo tempo que se desconsidera os interesses de uma maioria (Muñoz Conde, 2001, p. 92), podendo o direito penal ser utilizado como sistema de repressão em defesa de minorias dominantes, como, por exemplo, a punição (e proteção) mais severa da propriedade em relação a bens jurídicos como a vida, a saúde e a liberdade (Muñoz Conde, 2001, p. 93).


Ocorre que é frequente a constatação da fragilidade da conceituação, de forma que Prado (2013, p. 44) enfatiza que “a falta de clareza do significado do bem jurídico (termo equívoco) encontra correspondência na ausência de precisão de seu conceito”. De fato, a fragilidade conceitual da teoria do bem jurídico é flagrante, não porque inexistam suficientes pesquisas para explorar a teoria e aperfeiçoá-la, mas porque o seu alcance e aplicabilidade poderiam ser tão longos que não se afigure uma função crítica ou limitadora para o legislador. E se essa teoria tudo é, nada é.


Jesús-María Silva Sánchez (2002, p. 25), por exemplo, parte da perspectiva da sociedade de risco e da necessidade de expansão do Direito Penal, argumentando pela inevitabilidade do surgimento de novos bens jurídicos, à vista da configuração do risco de origem humana como fenômeno social estrutural, com novas formas de criminalidade organizada, o que poderia legitimar essa proteção através do Direito Penal. Para fundamentar o que foi afirmado especificamente sobre o ambiente, o autor faz referência à “deterioração de realidades tradicionalmente abundantes, que em nossos dias começam a se manifestar como ‘bens escassos’, aos quais agora se atribui um valor que antes não lhes era atribuído, pelo menos de forma explícita; por exemplo, o meio ambiente” (Silva Sánchez, 2002, p. 25).


A Criminologia tenta promover a teoria do bem jurídico para incluir a proteção de bens transindividuais e coletivos, como o ambiente. Ocorre que, à vista da fragilidade conceitual, questiona-se se o paradigma do bem jurídico é capaz de ser um critério crítico para limitar o poder punitivo. Percebe-se, à vista da perspectiva de Silva Sánchez (2002), a facilidade de se manipular o conceito da teoria do bem jurídico para legitimar a expansão do Direito Penal. Há como verificar que o meio ambiente aparece inequivocamente como um bem especialmente afetado pela expansão do Direito Penal no final do século passado. Contudo, parece ser muito problemático utilizar o Direito Penal para reagir ao risco ou ao clamor social e ambiental.


A teoria do bem jurídico-penal mostra-se ineficaz para conter o poder punitivo do Estado. Por outro lado, a Criminologia Crítica e a Criminologia Verde engajam-se com essa teoria ao examinar seus fundamentos e consequências, especialmente como essas questões se relacionam e refletem nas estruturas de poder e desigualdade.


A Criminologia Verde tem focado a análise nos danos sociais, que não são abstratos como o bem jurídico, ultrapassando também os limites da lei penal e incluindo condutas danosas por parte de entidades poderosas como Estados e corporações transnacionais. A Criminologia Verde visa a expor e enquadrar as consequências dessas ações e omissões em termos de transgressões contra humanos, animais e ecossistemas em um contexto global (Colognese; Budó, 2021).


A Criminologia Verde surge da Criminologia Crítica e expande os limites da Criminologia tradicional, ao focar nas questões ambientais (Colognese; Budó, 2021). Caracteriza-se principalmente pelo seu enfoque nas estruturas de poder que oprimem determinados grupos de pessoas, adotando uma análise crítica — muitas vezes radical ou marxista — das realidades sociais relacionadas ao crime e desvio, através das lentes das relações de poder, principalmente econômicas e estruturais (Colognese; Budó, 2021). Essa abordagem ressalta como a crítica ao capitalismo é fundamental para ambos os campos, Criminologia Verde e Crítica, pois ambos reconhecem que o capitalismo, em sua essência, depende da acumulação ilimitada e perpetuação das desigualdades (Colognese; Budó, 2021).


Nesse passo, ao discutir a teoria do bem jurídico-penal como instrumento para limitar o poder punitivo do Estado, foi possível verificar a fragilidade conceitual e a dificuldade de aplicá-la de maneira crítica e limitadora. Enquanto Prado e Silva Sánchez ressaltam a falta de clareza e a expansão potencial do Direito Penal para proteger novos bens, como o meio ambiente, a Criminologia, particularmente nas vertentes Crítica e Verde, questiona se esta teoria pode realmente servir como um critério eficaz para conter o poder punitivo estatal.


A Criminologia Verde, emergindo da Criminologia Crítica, amplia o escopo da análise criminológica para além dos limites tradicionais, focando em danos sociais e estruturas de poder que perpetuam desigualdades e opressão. Este novo campo procura incorporar uma análise crítica, frequentemente radical ou marxista, para destacar como o capitalismo, fundamentado na acumulação e nas desigualdades, influencia o crime e o desvio. Por fim, a Criminologia Verde busca expor e contextualizar as ações e omissões prejudiciais de entidades poderosas, como Estados e corporações transnacionais, e suas consequências para humanos, animais e ecossistemas, desafiando assim a capacidade do Direito Penal de responder adequadamente aos problemas sociais e ambientais contemporâneos.

 

Referências

BRASIL. Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998. Promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro, em 05 de junho de 1992. Brasília, 16 de março de 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d2519.htm. Acesso em: 29 abr. de 2024.

BRASIL. Decreto nº 5.445, de 12 de maio de 2005. Promulga o Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, aberto a assinaturas na cidade de Quioto, Japão, em 11 de dezembro de 1997, por ocasião da Terceira Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Brasília, 12 de maio de 2005. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5445.htm. Acesso em: 29 de abr. de 2024.

COLOGNESE, Mariângela Matarazzo Fanfa; BUDÓ, Marília de Nardin. Crimes e danos ambientais: a criminologia crítica como pressuposto para a criminologia verde–influências e convergências. Direito e desenvolvimento, v. 12, n. 2, p. 25-39, 2021.

HASSEMER, Winfried. ¿Puede haber delitos que no afecten a un bien jurídico penal?. In: La teoría del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del derecho penal o juego de abalorios dogmático? Ediciones Jurídicas y Sociales, 2007. p. 95-104.

MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al derecho penal. 2ª ed. Montevideo-Buenos Aires: Editorial B de F, 2001.

PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

ROXIN, Claus. Proteção de dois benefícios jurídicos em função do direito penal. Trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Livraria do Advogado, 2013

SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. A expansão do direito penal:aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais.Traduzido Luiz Otávio de Oliveira Rocha. Editor da Revista dos Tribunais, 2002.

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