top of page
  • Foto do escritorDaniele de Oliveira Lazzeres

Conflitos socioambientais e o não acesso [ao direito] à água no Brasil

Daniele de Oliveira Lazzeres

 

O uso e a importância da água tem trazido grades preocupações a sociedade moderna, principalmente pela degradação ambiental e esgotamento dos recursos hídricos por usos de setores econômicos específicos. Nesta seara, discussões em torno da água são colocadas constantemente em pautas de encontros nacionais e internacionais, propondo políticas que supostamente visem garantir água para o abastecimento humano e a manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado para as gerações presentes e futuras.


A Organização das Nações Unidas (ONU), em 2010 com a Resolução nº 64/292, reconheceu internacionalmente o direito à água com status de direito humano, sendo essencial para o pleno desfrute da vida e de todos os direitos humanos (ONU, 2022). Ainda, dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pelos 193 Estados membros da ONU, incluindo o Brasil, foi proposto garantir a disponibilidade e a gestão sustentável da água potável e do saneamento para todos até 2030, uma vez que o acesso a água potável  está estritamente vinculado à dignidade da pessoa humana e qualquer deliberação com finalidade de delimitar seu acesso traz consequências a outros direitos a ela intrínsecos, tais como os direitos à vida e a um nível adequado para a saúde e bem-estar (SILVA, 2015).


Referida discussão toma maior relevância quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2019), segundo estudo realizado em 2017, apontam que cerca de 2,2 bilhões de pessoas no mundo não têm serviços à água tratada e 4,2 bilhões não têm acesso ao saneamento básico adequado, fatores os quais contribuem diretamente para o aumento da desigualdade social. E, por sua vez, no Brasil, aproximadamente 35 milhões de pessoas no Brasil vivem sem água tratada e cerca de 100 milhões não têm acesso à coleta de esgoto (BRASIL, 2022.).


A corroborar com os dados, Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) destacou que em 2020 cerca de 175,5 milhões de pessoas no Brasil são atendidas por um sistema de abastecimento de água completo ou simplificado, o que corresponde ao índice de atendimento de 84,2% da população total residente. Sendo que as regiões do norte do país são as que apresentam menor índices de atendimento, o Norte com 58,9% e Nordeste com 74,9%, enquanto o Centro-Oeste, Sul e Sudeste os índices são de 90,9%, 91,0% e 91,3%, respectivamente (BRASIL, 2022), a disparidade dos índices de atendimento entre as macrorregiões decorre de suas condições socioeconômicas.


Contudo, frisa-se que 41% das cidades brasileiras, que reúnem mais de 102 milhões de brasileiros, sofrem com racionamento ou falta de água, segundo pesquisa MUNIC 2017, divulgada pelo IBGE (2020). Perceptível que tais números indicam que ter prestação de serviço de abastecimento de água potável com rede não é sinônimo e nem garantia de fornecimento e/ou disponibilidade de água nas torneiras das residências brasileiras, especialmente, diante do cenário de processo de urbanização desenfreado e sem planejamento, ainda, pela precariedade de o Estado prover a adequada prestação do serviços públicos desta natureza.


Além do cenário de desigualdade, também colacionam dados de conflitos pelo [não] acesso à água, que, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), entre 2005 e 2021, os conflitos por água aumentaram 481% no território nacional, sendo que mais de 80% dos casos foram registrados nas regiões Nordeste, Norte e Sudeste, com destaque aos estados da Bahia, Pará e Maranhão com maiores números de conflitos. Ainda, afetam diretamente as populações que se relacionam e dependem das águas para sobreviverem, com os povos indígenas sendo os mais afetados (32,5%), seguidos dos quilombolas (23,75%), pescadores (15%), posseiros (6,25%) e ribeirinhos (6,25%) (CPT, 2023).


Tais conflitos decorrem por situações como desabastecimento, poluição hídrica, contaminação pelo uso de agrotóxicos e degradação ambiental, como também estão relacionadas as disputas nas construções de barragens, hidrelétricas, mineração e uso das águas pelo agronegócio (irrigação, agropecuária etc.), dentre outros. Ainda, as disputas por água têm deixado um rastro de violações de direitos humanos em razão de inúmeros registrado de assassinatos de pessoas diretamente relacionados aos conflitos.


Diante de uma latente crise hídrica e de desenvolvimento econômico e do avanço no processo de urbanização no Brasil, a água, que é fundamental a manutenção da vida dos ecossistemas e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é a mesma que mata a sede das pessoas e dos animais, que abastece as casas e as indústrias, e que é a destinada à agricultura, agropecuária e a produção de energia, resultando em conflitos e concorrência pelos seus usuários. Assim, o acesso à água assume um significado múltiplo, uma vez que expressa “variedade do conflito entre os interesses relacionados e, de modo interdependente [...] envolvendo aspectos econômicos, proteção da vida, da saúde, do meio ambiente, de dignidade, do acesso aos recursos naturais e de proteção da cultura” (AYALA, 2010).


Frente a este cenário, tem-se fomentado o direito ao acesso à água por ser fator de inclusão social e estar atrelado a outros direitos fundamentais, posto que instalações hidrossanitárias estão relacionadas diretamente à higiene, alimento, moradia, saúde e em garantir uma melhor qualidade de vida à população e a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (VIEGAS, 2008). Desta forma, a garantia ao direito a água, implica urgentemente na criação de condições de acesso a um mínimo de “água limpa” necessária à sobrevivência humana, como também em desenvolver mecanismos e instrumentos de preservação e recuperação ambiental, especialmente voltados aos recursos hídricos (DAVIES, 2014).


Ainda que não materializado individualmente o direito à água no ordenamento jurídico brasileiro, porém interligado a outros direitos fundamentais, incumbe ao Estado dispor de instrumento e regulamentação para garantir a prestação eficiente do acesso à água limpa e potável com condições sanitárias adequadas, mas também em garantir a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, promover políticas de cunho ambiental para abster a contaminação e degradação da natureza, além de fiscalizar e adotar medidas que impeçam a contaminação ou exploração de forma indevida dos recursos hídricos e intervir em situações de conflitos (BERNAL PULIDO, 2015).


Desta forma, impõem-se urgentemente a concepção e materialização do direito ao acesso a água como um direito fundamental, responsabilizando o poder público pela garantia do acesso à água para todos, em uma base não-lucrativa (DAVIES, 2014, p. 108), essencial a construção de uma sociedade democrática e participativa e socialmente solidária, como o dever deste em cumprir ou fazer efetivo o direito à água através da adoção de políticas e medidas tendentes à satisfação desse direito, especialmente quando seu titular, por circunstâncias alheias a seu controle, não puder desfrutá-lo (BERNAL PULIDO, 2015).

 

Referências

 

AYALA, Patriyck de Araújo. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2010.6.

BERNAL PULIDO, Carlos. O direito fundamental à água e sua intrincada satisfação no direito colombiano. In: Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 2, n. 1, p. 65-87, jan./abr. 2015. DOI: http:// dx.doi.org/10.5380/rinc.v2i1.43101, 2015.

BRASIL. Estudo aponta que falta de saneamento prejudica mais de 130 milhões de brasileiros. Brasília. Agência Senado, 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/03/estudo-aponta-que-falta-de-saneamento-prejudica-mais-de-130-milhoes-de-brasileiros. Acesso em 05 jul. 2022.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA - CPT. Relatório Conflitos no Campo 2022. Centro de documentação Dom Tomás Balduino -Goiânia : CTP Nacional, 2023. Disponível em: ttps://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14302&catid=41&m=0

DAVIES, Lorenice Freire. Um não a Vidas Secas: o reconhecimento da água como direito humano fundamental e suas implicações como bem econômico envasado. In: Revista Direito Econômico Socioambiental, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 97-112, jul./dez. 2014.doi: 10.7213/rev.dir.econ.socioambienta.05.002.AO05, 2014.

FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA - UNICEF. 1 em cada 3 pessoas no mundo não tem acesso a água potável, dizem o UNICEF e a OMS. 2019. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/1-em-cada-3-pessoas-no-mundo-nao-tem-acesso-agua-potavel-dizem-unicef-oms. Acesso em 10 abr. 2024.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Pesquisa de Informações Básicas Municipais. 2020. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/df/brasilia/pesquisa/1/74454?ano=2020. Acesso em 10 abr. 2024

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution adopted by the General Assembly on 28 July 2010. 2010. Disponível em: https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/64/292&Lang=. Acesso em: 07 jul. 2022.

SILVA, Thalita Veronica Gonçalves. O Direito Humano de acesso à água potável e ao saneamento básico. Análise da posição da corte interamericana de direitos humanos. 2015. Disponível em: http://conexaoagua.mpf.mp.br/arquivos/artigos-cientificos/2016/13-o-direito-humano-de-acesso-a-agua-potavel-e-ao-saneamento-basico-analise-da-posicao-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos.pdf. Acesso em 07 jul. 2022.

VIEGAS, Eduardo Coral. Saneamento Básico, Mercantilização e Privatização da Água. Revista de Direito Ambiental | vol. 40/2005 | p. 24 - 43 | Out - Dez / 2005. DTR\2005\617, 2005.

20 visualizações0 comentário
bottom of page