Vítor Soares Miceli
Um dos principais aspectos a serem debatidos acerca da adaptação climática é sua capacidade de transformar positivamente as condições locais através a atuação de agentes políticos, sejam eles de dentro das instituições ou fora delas. Todavia, devemos questionar profundamente a literatura acerca da adaptação local, suas urgências e capacidades transformativas.
Nesse sentido, Preston et. al (2015) fazem considerações, se valendo de uma ampla gama de outros estudos, acerca do que é afirmado na ciência da adaptação climática de maneira geral, apontando uma série de heurísticas que talvez possam não ser totalmente verdadeiras ou consensos científicos. Para eles, há uma ausência de reflexão acerca das afirmações da ciência climática adaptativa, o que leva a formação de vieses que nem sempre condizem com a realidade, ou que possam ser afirmações que escondem nuances para a ciência e para adaptação em si.
Os autores (ibidem) asseveram que parte dos investimentos realizados em projetos climáticos não necessariamente se traduzem em redução de vulnerabilidade e/ou adaptação. Apresentam também que há evidências de déficit adaptativo em nações tidas como em desenvolvimento e até mesmo nas tidas como desenvolvidas. Finalmente, dizem que os investimentos realizados em adaptação focam mais em ações não estruturais, em oposição as ações que têm maior potencial de redução de vulnerabilidades.
Ainda, pontuam que a ênfase dada no argumento de que a adaptação é local acaba por se traduzir na ação de atores locais, sejam eles privados ou públicos, entretanto, tal ação acaba por sofrer influências de diversos atores, sejam eles de outros entes federados, de ONGs e de financiamento internacional. Esse apontamento está em confluência com o que parte da literatura da ciência política aponta, obviamente com especificidades de cada política pública (ARRETCHE, 2012, BICHIR et. al. 2017, BICHIR et. al., 2020), no qual um ente político acaba por sofrer influência de outro, seja por fatores de construção de políticas, aplicação e/ou recursos financeiros. Vale frisar que nem sempre os atores locais possuem meios para a atuação em projetos de maior complexidade, como algumas vezes são os de cunho climático.
Já em relação à defesa da tomada de ações do tipo sem arrependimento, os autores (PRESTON et. al, 2015) pontuam que tal ação, na prática, acaba por ser extremamente difícil de ocorrer, em virtude dos diversos interesses envolvidos nas ações climáticas e por haver, ainda que haja avanços significativos no entendimento das ameaças como um todo, diversas incertezas climáticas e de efetividade dos projetos que visam melhor adaptação futura. Outro ponto seria a de não existir um consenso da definição do que seja “arrependimento”.
Outra observação seria referente a necessidade de atuação urgente. Fazendo uso de outras literaturas, eles comentam que tal tomada de ação urgente pode resultar na má adaptação, em virtude da pressa em agir. Aponta-se também que as ferramentas e metodologias de aferição da má adaptação ainda estão pouco desenvolvidas. Podemos exemplificar tal ponto comentando acerca da construção de infraestruturas cinzas que nem sempre acabam por resolver questões ambientais, podendo inclusive representar uma piora significativa a longo prazo (SIEBERT, 2015).
Prosseguindo nessa toada, comentam também sobre a ideia de se realizar um amplo processo participativo na produção de projetos de cunho climático, onde todos os atores que podem ser atingidos estão interessados no andamento da diligência, entretanto, nem todos os agentes podem ter interesse em participar, ainda que possam ser atingidos, positivamente ou até mesmo negativamente (PRESTON et. al, 2015).
Outro ponto apresentado se refere a crítica ao planejamento reativo, ou seja, aquele que reage a alguma condição adversa manifestada, se diferenciando do planejamento antecipativo, aquele que visa prever alguma condição e se planejar para ela. Eles apresentam a visão contrária de que o planejamento reativo seja sempre ruim e que deve ser evitado a todo custo. Há o argumento que o planejamento antecipativo pode não ser tão assertivo em virtude das incertezas envolvidas.
Finalmente, critica-se o entendimento de que a adaptação é estritamente local. Os autores, também fazendo uso de ampla literatura, comentam que diversos aspectos da adaptação local na verdade têm relação com outras escalas de atuação, ainda que de certo modo a construção de infraestrutura, por exemplo, ocorra em um determinado ponto. Vemos um ponto de vista levemente diferente de IPCC (2007), da qual a adaptação é estritamente local.
Assim, concluem os autores:
Descobrimos que o raciocínio heurístico empregado na pesquisa e na prática da adaptação muitas vezes falha em refletir as nuances associadas à busca prática da adaptação (...) embora seja possível identificar literatura criticando o uso de algumas heurísticas comuns, tais críticas são frequentemente uma minoria. A fim de avaliar adequadamente se determinadas heurísticas são úteis e robustas, há uma necessidade crescente de reflexão mútua crítica entre cientistas e profissionais sobre quais pressupostos, heurísticas e princípios de adaptação permitem uma adaptação bem-sucedida na prática. (p. 482)
Temos, portanto, que tomar alguns cuidados metodológicos de análise que não nos leve a afirmar vieses que nem sempre condizem com a realidade. Em primeiro lugar, se tratando de políticas públicas, os apontamentos realizados pela ciência política, notadamente a literatura sobre escolha de instrumentos (HUSSEIN, LE GALES, 2010, LASCOUMES, LE GALES, 2007), entendendo os instrumentos como instituições são deveras pertinentes. Com isso, podemos ter maior profundidade de aproximação, nos permitindo observar aspectos esclarecedores.
Hussein e Lè Galès (2010) pontuam que é importante sublinhar algumas das implicações desse entendimento de instrumentos como instituições. Ao colocar instrumentos políticos como instituições, possibilitamos nos debruçar sobre os insights oferecidos pela aproximação sociológica, como instituições, os instrumentos comportam atores e com isso temos que seus comportamentos privilegiam certos pontos em detrimento de outros fazendo eco a citação de Lowi que “policies determines politcs” (1972, p. 299). Os autores prosseguem comentando que instrumentos são formas de poder, portanto, dificilmente são neutros. Com isso, nada garante que um instrumento novo seja bom, eficiente, transparente e mais democrático do que o sucessor. O segundo conceito central é a instrumentação da política pública, que se refere ao problema colocado pela escolha e pelo uso de certos instrumentos, devendo se entender as consequências das escolhas dos instrumentos, para além dos seus resultados em si. A instrumentação da política traz considerações acerca de relações de poder, não sendo uma escolha (do instrumento a se usar) meramente técnica, o que contrapõe por exemplo o ponto de partida funcionalista, da qual a função do instrumento determina sua escolha per se. Portanto, na literatura da sociologia política os instrumentos têm significados sociais e políticos, com efeitos para além do que foram desenhados.
Tendo isso em mente, podemos compreender melhor o andamento das políticas ambientais, afinal, se trata de uma política como qualquer outra e está sujeita aos mais diversos interesses políticos, sociais e econômicos, ainda que tenham a importância que tem.
Outro ponto relevante apontando pela literatura ambiental, é que não podemos partir de entendimentos pré-estabelecidos que podem não condizer com a realidade dada. Preston et. al. fazem importantíssimas indicações, valendo de consulta de ampla bibliografia, de modo a argumentar que preceitos que tomamos como totalmente corretos e nem nos aprofundamos para entender se de fato são factíveis podem de alguma maneira não revelar nuances que podem acabar por serem decisivas em uma análise certeira ou em um projeto com impactos positivos.
Finalmente, ter todos esses aspectos em mente em um momento de grande comoção nacional, é fundamental. O desastre social ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul, onde chuvas acima da média, aliadas a não atuação política do governo estadual e de algumas cidades (ou podemos olhar pelo ponto de vista que houve atuação política, realizada em detrimento do meio ambiente) levaram a um estado de calamidade pública nunca antes visto. Cidades ficaram submersas, bairros foram devastados e com isso toda uma infraestrutura de suporte do tecido social se esvaiu. Diante disso, reconstruções serão inevitáveis.
Ainda que estejamos diante de tal cenário, atuação política apressada e/ou impensada (ou pensada de modo a reproduzir o chamado “capital do desastre”) pode levar a mais destruição ambiental. Atentar a quais interesses a reconstrução de infraestruturas necessárias estão atendendo e quais são os impactos esperados, torna-se primordial.
*o respectivo texto faz parte da pesquisa de mestrado do autor, que trabalha aspectos de adaptação climática em temas de planejamento urbano dentro do Plano de Ação Climática de São Paulo, com a pesquisa intitulada Adaptação às Mudanças Climáticas – PlanClima. Aplicabilidade em área de risco na cidade de São Paulo, a ser defendida em 2025 pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo, PROCAM-USP.
Referências bibliográficas
ARRETCHE, M.T. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV/Editora Fiocruz, 2012.
BICHIR, R. M.; SIMONI Jr, S.; PEREIRA, G. Sistemas nacionais de políticas públicas e seus efeitos na implementação: o caso do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.35 no.102 São Paulo, 2020.
BICHIR, R., BRETTAS, G. H., CANATO P. Multi-level Governance in Federal Contexts: the social welfare Policy in the City of Sao Paulo. Brazilian Political Science Review 11(2). 2017.
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KASSIM, H., LE GALÈS, P. Exploring Governance in a Multi-Level Polity: A Policy Instruments Approach, West European Politics, 33:1, 1-21. 2010. DOI: 10.1080/01402380903354031.
LASCOUMES, P., LE GALES, P. Introduction: understanding public policy through its instruments. Governance, Vol. 20, n. 1, p. 1-21, 2007.
LOWI, T. J. Four Systems of Policy, Politics and Choice. Public Administration Review, pp. 298-310. 1972.
PRESTON, B.L., Mustelin, J. & Maloney, M.C. Climate adaptation heuristics and the science/policy divide. Mitig Adapt Strateg Glob Change 20, 467–497 (2015). https://doi.org/10.1007/s11027-013-9503-x
SIEBERT, Claudia. O que muda com a mudança climática? Má-adaptação: quando a adaptação aumenta o risco. v. 16 n. 1. Anais do XVI ENANPUR. Belo Horizonte. 2015.
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