Roberto Alexandre Levy
A recente tragédia no Rio Grande do Sul, marcada por eventos como enchentes e deslizamentos sem precedentes na história, trouxe à tona uma série de problemas ambientais e sociais que não podem ser ignorados. As causas diretas, como eventos climáticos extremos potencializados pelas mudanças climáticas, combinam-se com causas indiretas, como políticas públicas inadequadas e a falta de infraestrutura, criando um cenário devastador. Essa situação ilustra a vulnerabilidade das comunidades, especialmente as mais pobres, e a incapacidade do estado de responder de forma eficaz às crises ambientais. Além disso, a tragédia expôs as deficiências nas políticas de planejamento urbano e gestão ambiental, que falham em proteger os cidadãos e o meio ambiente, ficando totalmente à mercê do lucro e da acumulação de riqueza. A consequência foi a destruição quase que total de um estado, resultando em centenas de milhares de pessoas com suas vidas arruinadas e mais de uma centena de vítimas fatais. Um prejuízo social e econômico que ainda não pode ser totalmente mensurado.
Ao examinar essa tragédia à luz da filosofia do direito, podemos identificar a forma jurídica como um elemento que não apenas reflete, mas também reproduz e mantém as relações de produção capitalistas. A crítica aqui proposta parte da premissa de que a forma jurídica atua como um mecanismo de perpetuação da lógica de acumulação de capital, em vez de promover o bem-estar coletivo e a proteção ambiental.
A forma jurídica, conforme analisado pelo jurista soviético Evguiéni Pachukanis, não é apenas um conjunto de normas e regras, mas uma forma social[1] que reflete e sustenta as relações de produção capitalistas. Pachukanis argumenta que o direito, em sua essência, é inseparável da mercadoria e das relações mercantis, funcionando como um instrumento que naturaliza e legitima a exploração e a desigualdade inerentes ao capitalismo. A forma jurídica, ao estabelecer sujeitos de direito, propriedade privada e contratos, cria e mantém as condições necessárias para a reprodução do capital. O fim deste modo de produção, portanto, deve ser igualmente o fim da forma jurídica, visto que a legalidade surge na circulação mercantil e se plenifica na produção capitalista. Pachukanis vai além ao afirmar que a legalidade não apenas acompanha o capitalismo, mas é uma expressão intrínseca dele. Essa conclusão reforça a atualidade da crítica de Pachukanis, que permanecerá relevante enquanto a ordem capitalista existir (Kashiura Jr., 2009, p.54).
Um exemplo claro disso é a Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), que visa proteger a livre iniciativa e o exercício da atividade econômica, mas enfrenta críticas por sua constitucionalidade, especialmente no direito urbanístico. A lei confunde a livre iniciativa com o direito de propriedade imobiliária, resultando em ambiguidades e subjetividades que dificultam a sua aplicação. Especificamente, os dispositivos sobre atividades econômicas de baixo risco e medidas compensatórias são vagos, comprometendo a função social da propriedade e favorecendo grandes proprietários. Isso resulta na violação dos princípios básicos do direito urbanístico e nos objetivos fundamentais da Constituição, promovendo a desregulação urbanística sob a falsa premissa de desburocratização. Em outras palavras, acaba por enfraquecer as regulamentações ambientais e urbanísticas essenciais.
A mercantilização da natureza e a forma jurídica estão intrinsecamente ligadas, reforçando a lógica de exploração capitalista e permitindo que a natureza seja transformada em mercadoria. No contexto do Brasil, e consequentemente do Rio Grande do Sul, as políticas de valorização imobiliária e licenciamento urbanístico também exemplificam essa dinâmica. A legislação urbana muitas vezes transforma a função social da propriedade (cf. Jelinek, 2006) em um instrumento aparente, impedindo a efetiva distribuição de riqueza e a proteção do meio ambiente. Leis que confundem o direito à livre iniciativa com a propriedade privada ignoram a necessidade de regulamentações que protejam o bem-estar coletivo e o próprio meio ambiente. Isso resulta em uma aplicação ambígua e subjetiva, que favorece interesses privados em detrimento do público (Fontes et al, 2019).
Além disso, a expansão desenfreada do agronegócio com seus monocultivos à base de agrotóxicos e outras atividades econômicas correlatas, como a agropecuária extensiva, facilitada por uma legislação que prioriza o lucro sobre a sustentabilidade, contribui para a degradação ambiental e a inexorável potencialização da crise ecológica e climática. A legislação permite a expansão do agronegócio e outros setores econômicos às custas do meio ambiente e das comunidades locais. Esse processo é visível no modo como a legislação urbana frequentemente ignora a função social da propriedade, permitindo que interesses privados prevaleçam sobre o bem-estar coletivo.
A análise das tragédias no Rio Grande do Sul sob a perspectiva da forma jurídica como reprodutora do capital evidencia a necessidade urgente de uma transformação estrutural. O direito burguês, em vez de atuar como um mecanismo de proteção e promoção do bem-estar coletivo, essencialmente existe para perpetuar a lógica de acumulação de capital. A crítica de Pachukanis permanece viva e relevante enquanto a ordem capitalista existir, reforçando a necessidade de um modelo de produção que priorize a vida acima do lucro.
Para superar as crises ambientais e sociais, é imperativo questionar e transformar a forma jurídica que sustenta o capitalismo. Apenas através de uma ruptura com o modo de produção capitalista e a adoção de um modelo socialista de produção será possível construir uma sociedade que efetivamente proteja tanto as pessoas quanto o meio ambiente.
REFERÊNCIAS
KASHIURA JÚNIOR. C. N. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. In: NAVES, Marcio Bilharinho. (Org.). O discreto charme do Direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. 1ª ed. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanos da Unicamp, 2009, v. 8, p. 1-172.
LEI Nº 13.874, DE 20 DE SETEMBRO DE 2019. Cap. II, Art 3º, Inciso I. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 20 maio 2024.
MASCARO, ALYSSON LEANDRO. Formas sociais, derivação e conformação. REVISTA DEBATES, v. 13, p. 5-16, 2019.
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e o marxismo. Tradução por Paula Vaz de Almeida. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
JELINEK, Rochelle: O Princípio da Função Social da Propriedade. Porto Alegre. 2006. p.10. Disponível em: https://www.mprs.mp.br/media/areas/urbanistico/arquivos/rochelle.pdf. Acesso em: 20 maio 2024.
FONTES, Mariana; NAKANO, Anderson; MARTINS, Maria; OLIVEIRA, Liana; ALFONSIN, Betânia. (2019). Nota técnica sobre a Medida Provisória nº 881/2019, que institui a declaração de direitos da liberdade econômica. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340417120_Nota_tecnica_sobre_a_Medida_Pr ovisoria_n_8812019_que_institui_a_declaracao_de_direitos_da_liberdade_economica. Acesso em: 20 maio 2024.
[1] No sistema capitalista, formas sociais constituem a estrutura fundamental da sociedade e determinam as relações sociais. As formas sociais são entendidas como padrões ou estruturas que organizam a vida social e econômica, influenciando a maneira como os indivíduos interagem e se relacionam. A determinação social refere-se ao processo pelo qual essas formas moldam e condicionam a prática social, estabelecendo limites e possibilidades para a ação humana. Assim, as formas sociais não são meras abstrações, mas elementos concretos que configuram a realidade social e econômica, tendo um papel crucial na reprodução das relações de produção e das estruturas de poder (Mascaro, 2019, p. 8-10).
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