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  • Foto do escritorLeura Dalla Riva

A ideia de "Natureza"


Hoje, a expressão “natureza” possui múltiplos significados e usos dos quais se destacam dois: a) sinônimo de “qualidade ou propriedade essencial” de algo; e b) meios ambientes, especialmente àqueles que não foram ou foram limitadamente modificados pelos seres humanos.


As relações metabólicas entre seres humanos e meio ambiente e a concepção humana do que se entende por Natureza nem sempre existiram, contudo, nos padrões da modernidade.


Como então a ideia ou o significado de "natureza" mudou ao longo da história humana?


Um importante autor que trabalha com esse debate é Paolo Vidali.


Apresentando a visão de diversos filósofos, Vidali demonstra que a physis grega era entendida como ordem, vida e inteligência, mesmo nos seus componentes abióticos que seriam inteligentes no senso de que cada ente carrega em si um projeto de desenvolvimento interno ou externo, assim “tutta la natura participa di questo movimento orientato al bene, dei singoli enti e del mondo nel suo complesso” (2022, p. 38). Nesse contexto, o homem é parcialmente conhecedor da natureza e das suas finalidades, habita a physis sem intenção de governá-la, pois é um objeto de saber, mas especialmente de respeito.


Ao estudar o período medieval, Vidali destaca como a concepção de Natureza do mundo antigo perde vigor, passando por duas grandes transformações: primeiro, passa a ser vista como uma criação de Deus; segundo, sendo criação divina, cabe ao homem compreendê-la, aceitá-la e utilizá-la para satisfazer suas necessidades. O ponto de vista medieval[1] se distingue do antigo, segundo o autor, porque o homem é o ápice da criação divina, mas não é o centro do mundo, permanecendo condenado pelo pecado. A Natureza é um “maravilhoso desenho divino”, mas também um mundo a ser atravessado sem pertencer: “la natura è immagine della volontà di Dio, ma anche un mondo da abitare sapendo di non appartenergli, da comprendere senza la prospettiva di dominarlo. Eppure, nel pensiero medievale stanno già maturando i semi del moderno” (VIDALI, 2022, p. 52).


Muitas das ideias embrionárias do período medieval atingem sua maturidade na modernidade, dentre elas a autonomia humana marcada por uma cada vez maior autonomia dos ciclos naturais, um melhor controle da técnica, um papel cada vez mais importante das burguesias urbanas, um novo relacionamento entre tempo e espaço ligado ao fazer e ao calcular. Assim, o desenvolvimento da cultura europeia entre os séculos XV e XVI gerou uma profunda aceleração no desejo de organizar e não apenas contemplar o mundo natural. A Natureza deixa de ser apenas uma selva de símbolos para ser domesticada (VIDALI, 2022).


L’uomo moderno si è separato dalla natura per poterla comprendere scientificamente, per poterla descrivere matematicamente, per scoprirne le leggi e così conoscerla e controllarla. Il prezzo pagato per questo straordinario riorientamento è la riduzione della varietà naturale alle sue affezioni quantitative, descrivibili matematicamente. La natura cessa di essere physis per diventare oggetto rispetto ad un soggetto. Diviene una macchina da comprendere al fine di governarla, ma al prezzo di separarsi da essa. […] La physis antica si degrada a cosa, sottoposta all’analisi e al dominio tecnico e cognitivo [...]. Trasformando la natura in oggeto l’uomo rimane il solo ente capace di libertà, di creatività, di immaginazione (VIDALI, 2022, p. 89).

A ideia moderna de Natureza seria de origem renascentista europeia e caracterizaria uma concepção do meio ambiente como algo externo aos seres humanos, separado e distinto da sociedade (GUDYNAS, 2019).


Raúl Llasag Fernández também explica como a Natureza é modernamente entendida como “o entorno natural” (animais selvagens, rochas, florestas, praias, enfim, todas as coisas alteradas substancialmente pelo ser humano ou que persistem apesar dessa intervenção humana). Para o autor, nesta visão, que tradicionalmente implicou a distinção entre natural e artificial (entendido como aquilo criado por uma consciência humana), o humano obviamente não faz parte da Natureza porque é um sujeito que tem o direito de explorar e se apropriar dos recursos naturais (FERNÁNDEZ, 2011).


Essa noção teria levado a visualização da Natureza como uma “soma de componentes que poderiam ser separados uns dos outros, estudados e, graças a isso, dominados, controlados e manipulados”, conforme proposições de filósofos renascentistas como René Descartes, Francis Bacon e outros (VIDALI, 2022; ZAFFARONI, 2011; MESSINA, 2021). Descartes (1596-1650) foi um dos pilares do racionalismo europeu e considerava o universo uma grande máquina sobre a qual o ser humano deve se tornar dono e possuidor. No mesmo sentido, Francis Bacon (1561-1626) reivindicava que “a ciência torture a Natureza assim como faziam os inquisidores do Santo Ofício com seus réus, para conseguir revelar até o último de seus segredos” (ACOSTA, 2016).


O controle da Natureza pelos seres humanos (na expressão de Descartes: como “mestre e dono da Terra”) também teria sido fortemente legitimado por interpretações da doutrina judaico-cristã que prevaleceram historicamente no mundo ocidental. Como argumenta Leonardo Boff, trata-se de “um tipo de leitura do Gênesis que diz ‘crescei e multiplicai-vos, dominai a Terra, os peixes do mar, as aves do céu e tudo o que vive e se move sobre a face da Terra’” (BOFF, 2016).


Assim também argumenta Sergio Messina:


Il percorso storico-filosofico che ha ad oggetto le origini della ‘crisi (socio)ecologica’ ha anzitutto attribuito il verificarsi di tale ‘evento’ ad un generale ‘atteggiamento di dominio’ proprio della cultura occidentale definito ‘sciovismo umano’, in quanto avrebbe posto per l’appunto l’essere umano al centro delle preoccupazioni morali, etiche e politiche. Tale atteggiamento, caratterizzato da una propensione prevalentemente utilitaristica nei confronti della natura, espressione di una ragione ‘strumentale’ e ‘tecnoforma’, ha in ogni caso […] trovato la sua giustificazione […] con la nascita della scienza e della filosofia moderna (Messina, op. cit., p. 48)

Nas últimas décadas, no campo teórico e jurídico, desenvolveu-se a ideia de "direitos da Natureza" como alternativa à concepção moderna que visualiza a Natureza como objeto.


Os direitos da natureza (DDN) consistem, nesse contexto, no reconhecimento de subjetividade jurídicas aos elementos do meio natural, sejam bióticos ou abióticos, coletivos ou singulares. Significam também o reconhecimento de valores intrínsecos aos elementos não-humanos da biosfera e, portanto, a proteção autônoma dos ecossistemas, o que enseja a proteção direta do meio ambiente, ou seja, não pela violação de direitos humanos, mas por possuir em si um direito fundamental a existência e manutenção dos seus ciclos vitais (DALLA RIVA; LERSCH, 2022).


Acompanhe as publicações do Ruptura para aprofundar mais os temas tratados no breve post de hoje.


Referências:


DALLA RIVA, Leura; LERSCH, Eduardo Schneider. Rights of Nature in Ecuador, Brazil, and New Zealand: an analysis from the legal formants theory. In: MOREIRA, V. et al. Temas de Direitos Humanos do VII CIDH - Coimbra 2022. VII Congresso Internacional de direitos humanos de Coimbra: uma visão transdisciplinar. Campinas: Editora Brasílica / Edições Brasil. 2022.


MESSINA, Sergio. Eco-democrazia. Per una fondazione ecologica del diritto e della politica. Napoli-Salerno: Orthotes, 2019.


ACOSTA, Alberto. O Bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Elefante, 2016


BOFF, Leonardo. Sustentabilidade: o que é, o que não é. Petrópolis: Vozes, 2016, p. 74-75.


VIDALI, Paolo. Storia dell'idea di Natura. dal pensiero greco alla coscienza dell'antropocene. Milano: Mimesis, Filosofie, 2022


FERNÁNDEZ, Raúl Llasag. Derechos de la naturaleza: una mirada desde la filosofía indígena y la Constitución. IN: Carlos Espinosa Gallegos–Anda y Camilo Pérez Fernández. Los Derechos de la Naturaleza y la Naturaleza de sus Derechos. Quito: Ministerio de Justicia, Derechos Humanos y Cultos, 2011, p. 75

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