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A evolução da exploração espacial: do domínio do céu à observação da Terra*

Federica Giaccio

 

Federica Giaccio[1]


* Texto original em inglês. Tradução da equipe Ruptura


[1] Convidada internacional. Doutoranda em Direito Comparado e Processos de Integração na Università degli Studi della Campania Luigi Vanvitelli, Caserta, Itália

 

Ao longo da história, o espaço tem sido objeto de discussões científicas e filosóficas. No século XX, ele também se tornou um ponto focal da política internacional, aumentando a concorrência entre as potências globais. O interesse científico no espaço começou na Rússia czarista, onde o movimento cosmista promoveu a ideia do domínio humano no universo por meio da ciência e da tecnologia. O conceito de “controle dos céus” surgiu durante a Guerra Fria, após o desenvolvimento de tecnologias militares para a pesquisa espacial.


A corrida espacial, um momento crucial na história da exploração espacial, foi marcada por uma intensa rivalidade, principalmente entre os Estados Unidos e a União Soviética. Essa rivalidade remodelou o cenário geopolítico, levando a uma comunidade internacional multipolar. As vantagens estratégicas do espaço, como o monitoramento das atividades inimigas e a facilitação das comunicações globais por meio de satélites, alimentaram a corrida para estabelecer o controle sobre ele.


A dinâmica ligada à descoberta e ao controle humano do espaço influenciou o contexto político e jurídico do período da Guerra Fria. Esse processo apresentou paralelos significativos com as conquistas de espaços “desconhecidos”, como a fronteira.


A América do Norte Ocidental e a "disputa" pela África foram casos em que se sentiu a necessidade de um sujeito político soberano. Portanto, esses territórios foram considerados res nullius; da mesma forma, o espaço foi dotado da mesma natureza jurídica dos territórios conquistados pelos povos ocidentais durante o século XIX. Essa condição determinou as tendências competitivas entre os Estados Unidos e a União Soviética, que se viram atuando em uma arena cujo grau de anarquia era ainda mais intenso devido à ausência de instituições capazes de moderar seus efeitos.


As nações envolvidas na disputa espacial reconheceram que ter o ponto de vista mais alto proporcionava vantagens inigualáveis. A capacidade de monitorar os movimentos do inimigo, rastrear lançamentos de mísseis e reunir inteligência estratégica tornou-se crucial.


O programa da Lua, liderado pelos EUA, foi uma conquista monumental na exploração espacial. Além de ter sido um marco significativo, também desencadeou a criação de tratados internacionais.


A necessidade de preservar o espaço e evitar o absurdo de transferir a emulação nacional para além da atmosfera também passou para a órbita do direito internacional, sancionando o Tratado do Espaço Exterior em 1967, que proíbe qualquer reivindicação de espaço territorial, e outros quatro tratados destinados a manter o uso pacífico do espaço, dos astronautas, da Lua e dos corpos celestes ratificados entre 1967 e 1979 (Hobe, 2010).


Esses tratados foram um passo fundamental para garantir o uso pacífico do espaço, marcando uma mudança significativa do domínio militar para a colaboração internacional pacífica. Essa transição para a pesquisa científica levou a uma maior participação de países como Japão, China e Índia. Ela culminou com a criação da Estação Espacial Internacional, um símbolo da estreita cooperação entre várias nações.


A democratização do acesso ao espaço aumentou significativamente o envolvimento de agentes privados em programas espaciais (Baiocchi e Welser, 2015). Essa mudança abriu o caminho para futuras missões humanas à Lua e além, anunciando uma nova era na exploração espacial. Consequentemente, as discussões sobre a exploração espacial e a utilização de recursos estão se tornando mais proeminentes nos níveis institucional e comercial. O crescente discurso em torno da comercialização do espaço e de seus recursos trouxe-o para a vanguarda das conversas nos setores governamentais e não governamentais. As empresas estão cada vez mais atraídas pela oportunidade de enfrentar os novos desafios tecnológicos e comerciais no domínio espacial, o que deu origem à Nova Economia Espacial, que se apresenta como uma arena fundamental para a inovação de alta tecnologia e oportunidades de desenvolvimento comercial e estratégico (Sommariva, 2020).


A transição da aplicação (apenas) do espaço militar para a observação da Terra e a preservação ambiental representa uma mudança significativa de paradigma na utilização das tecnologias espaciais.


O espaço não só desempenhou um papel crucial nas aplicações militares, mas também contribuiu significativamente para o desenvolvimento e a implementação de tecnologias específicas na vida cotidiana. Um número cada vez maior de aspectos de nossa vida diária está ligado ao setor espacial, como os dados de satélite usados para navegação e o setor de telecomunicações. A Nova Economia Espacial refere-se à parte da economia voltada para o crescimento, desenvolvimento e gerenciamento de ferramentas, infraestrutura e técnicas para a utilização do espaço cósmico. Ela serve como um catalisador para a inovação, indo além dos limites tradicionais do espaço (Jakhu, 2009)


Um exemplo notável é o desenvolvimento do sistema de navegação por satélite (GPS), cuja evolução teve um impacto notável em vários aspectos de nossa rotina diária. A tecnologia GPS transformou completamente a forma como navegamos, revolucionando o transporte e tornando o tráfego de veículos e pedestres mais preciso e eficiente. Além disso, ela teve um impacto profundo nas práticas agrícolas, possibilitando a agricultura de precisão e levando a um melhor gerenciamento de recursos. Além disso, o GPS surgiu como uma ferramenta essencial para lidar com desastres ambientais, fornecendo suporte crucial para operações de busca e resgate e coordenando com eficiência os serviços de emergência durante as crises.


Outra transformação digna de nota, que passou do uso exclusivamente militar para aplicações civis, é a evolução dos satélites de reconhecimento para satélites avançados de sensoriamento remoto. Esses satélites agora são empregados no monitoramento da superfície da Terra e no fornecimento de imagens de alta resolução para facilitar as atividades agrícolas, o planejamento urbano e, até mesmo neste caso, o gerenciamento de desastres naturais. A incorporação de tecnologia de nível militar nos satélites possibilitou a coleta e a transmissão de dados em tempo real, o que é fundamental para respostas imediatas a furacões, enchentes e incêndios florestais.


O papel europeu na observação da Terra


Durante a fase inicial da era espacial, a Europa parecia ter sido deixada de fora da competição com os Estados Unidos e os soviéticos. Isso não se deveu apenas à sua aparente falta de interesse direto na exploração espacial, mas também ao fato de não ter nenhuma nação ou programa espacial comunitário que pudesse ser comparado aos dos EUA e da URSS.


Entretanto, havia um desejo claro entre as nações europeias de participar da corrida espacial. O físico italiano Edoardo Amaldi, que era o diretor do CERN, propôs a ideia de unir os seis países membros da EURATOM, além de incluir a Inglaterra e os países escandinavos, para desenvolver um plano detalhado comparável aos projetos dos EUA e da União Soviética. O objetivo era acessar as despesas e criar um cronograma realista, na esperança de resolver a questão financeira com a colaboração direta dos governos dos países membros envolvidos no projeto.


O programa europeu tinha o objetivo de se tornar independente dos Estados Unidos e enfatizava a importância de manter uma abordagem pacífica do projeto. Isso foi particularmente crucial naquela época, pois havia a possibilidade iminente de um conflito crescente entre as duas superpotências, que poderia se estender ao domínio do espaço (Giaccio, 2022).


O ELDO e o ESRO foram criados e, em 1974, fundiram-se para formar a ESA (Agência Espacial Europeia), que tem sede em Paris e um espaçoporto na Guiana Francesa.


O fortalecimento dessa nova agência envolveu a colaboração entre a Bélgica, a França, a Alemanha, o Reino Unido, a Itália, a Holanda, a Dinamarca, a Espanha, a Suécia e a Suíça. Foi o prelúdio de uma cooperação cada vez mais intensa que até mesmo os precursores da pesquisa, como o italiano Amaldi, identificaram como o único caminho para o progresso espacial no Velho Continente e além.


Conforme mencionado no parágrafo anterior, no século XX, os governos fundaram atividades espaciais principalmente para exercer influência geopolítica, bem como para apoiar sua política industrial e apoiar pesquisas científicas férteis. O desenvolvimento de um setor de serviços em torno de lançamentos de satélites durante a Guerra Fria caracterizou esses objetivos. Em 1979, a ESA desenvolveu a espaçonave Ariane para obter independência de interesses não europeus. Isso garantiu a autonomia no lançamento de satélites, inclusive os de observação da Terra.


A Europa compete no pódio dos principais participantes do Novo Espaço - com a exclusão dos participantes privados - por ter tanto o know-how quanto as capacidades industriais competitivas (Mauro, 2021) e agências coordenadas, como a ESA, que permite o acesso de suas pesquisas a start-ups e indústrias para promover a competitividade industrial no setor espacial europeu (ESA, Agenda).


“ESA's purpose shall be to provide for, and to promote, for exclusively peaceful purposes, cooperation among European States in space research and technology and their space applications, with a view to their being used for scientific purposes and for operational space applications systems” (Article II, Purpose, Convention of establishment of a European Space Agency).

A ESA logo se tornou uma das primeiras arenas para o uso civil de satélites para o meio ambiente. Em 19, os satélites Meteosat ERS-1, ERS-2 e Envisat marcaram o início do envolvimento da ESA na observação da Terra a partir do espaço. Em seguida, os satélites Meteosat ERS-1, ERS-2 e Envisat forneceram uma grande quantidade de dados valiosos sobre a Terra, seu clima e as mudanças ambientais.


Em 22 de fevereiro de 1986, a Europa estabeleceu um marco significativo com o lançamento de seu primeiro satélite de observação da Terra, o SPOT 1, a bordo de um foguete Ariane 1 de Kourou. Esse evento anunciou três décadas de avanços tecnológicos revolucionários e inúmeras novas aplicações.


Figure 1 Science for Environment Policy. European Commission, February 2013

 

O programa Copernicus, anteriormente conhecido como Global Monitoring for Environment and Security (GMES), é uma iniciativa emblemática da União Europeia desenvolvida em parceria com a Agência Espacial Europeia. Ele serve como um catalisador para o desenvolvimento econômico e promove a inovação na UE.


O programa Copernicus começou com uma série de reuniões em 1998, em Baveno (Itália), entre a Comissão Europeia e representantes do setor espacial europeu. Essas reuniões resultaram no “Manifesto di Baveno” que exigia um compromisso de longo prazo para o desenvolvimento de serviços de monitoramento ambiental baseados no espaço na Europa (Brachet, 2004). O manifesto representou um pedido de ação europeia conjunta para melhorar o monitoramento ambiental a partir do espaço e definir uma estratégia contra as mudanças climáticas, buscando desenvolver uma “Estratégia Europeia para o Espaço” com estreita colaboração entre a ESA e a União Europeia.


Reconhecendo a complementaridade entre a observação espacial e a observação in-situ, foi introduzido o conceito de “Estratégia de Observação Global Integrada” (IGOS), que levou à criação da Parceria IGOS (IGOS-P) em 1998. O objetivo da IGOS-P era reunir redes de observação espaciais, in-situ e outras redes de observação para permitir a integração e o compartilhamento de informações entre comunidades de usuários e pesquisas científicas em todo o mundo. Representantes da Comissão Europeia, da ESA, da Eumetsat e das agências espaciais nacionais da França, Alemanha, Itália e Reino Unido participaram da discussão. Reconheceu-se que a Europa tinha dificuldade em transformar observações espaciais orientadas por P&D em sistemas operacionais que atendessem às necessidades concretas da sociedade. Essa situação incentivou os diferentes atores a desenvolver um plano para criar uma estratégia europeia de observação da Terra, com a ideia de que um serviço global de informações ambientais poderia ser uma solução relevante para a implementação do Protocolo de Kyoto. Vários tópicos e aplicativos de pesquisa foram desenvolvidos a partir de dados de sensoriamento remoto por meio do Joint Research Center e do Space Applications Institute (SAI) em Ispra, na Itália.


O Copernicus, um sistema de observação da Terra que depende da tecnologia de sensoriamento remoto, foi projetado especificamente para monitorar cientificamente o planeta Terra. Sua pertinência foi ressaltada durante as crises de 2019, como os incêndios na Sibéria e na Amazônia, reforçando a liderança da Europa na gestão de emergências. Isso enfatiza ainda mais o papel vital do Copernicus no fornecimento de dados essenciais para compreender e abordar ocorrências globais.


Os dados fornecidos pelo Copernicus são abrangentes, de livre acesso e disponíveis sem reservas e, quando complementados com outros repositórios de satélites, são fundamentais para o monitoramento, a modelagem e a previsão do clima. Considerado um elemento fundamental, juntamente com outros empreendimentos da UE, como o SEIS (Sistema de Informações Ambientais Compartilhadas) e o INSPIRE (Infraestrutura de Informações Espaciais da União Europeia), o Copernicus tem uma importância significativa.


Como membro do Grupo de Observação da Terra (GEO), a Comissão Europeia colabora com 88 governos participantes para estabelecer uma rede global de sistemas de observação da Terra, conhecida como Global Earth Observation System of Systems (GEOSS).


No domínio da Observação da Terra, o orçamento de 2024 para a Agência Espacial Europeia reflete um aumento de 30,5% em comparação com o ano anterior, com as principais contribuições provenientes da Itália, Alemanha e França.


Figure 2 ESA milestone 2024

 

Conclusions

A transição do controle do céu para a observação avançada da Terra ressalta o profundo impacto da exploração espacial em nosso mundo. Ela revolucionou a forma como compreendemos e interagimos com nosso planeta, impulsionou a inovação tecnológica e abriu novas fronteiras para o esforço humano. À medida que persistimos na exploração e utilização do espaço, o potencial para mudanças positivas e progresso é ilimitado.


O progresso tecnológico estimulado pela exploração espacial teve implicações de longo alcance que vão além do domínio da ciência; os avanços em ciências materiais, telecomunicações, computação e outros domínios foram impulsionados pelas exigências das viagens espaciais. A miniaturização da tecnologia, imprescindível para as missões espaciais, também catalisou uma revolução na eletrônica de consumo, resultando em dispositivos menores, mais potentes e mais econômicos.


Além disso, a busca pela exploração espacial gerou inspiração para gerações de cientistas, engenheiros e pesquisadores em todos os campos, promovendo a colaboração internacional. A Estação Espacial Internacional é um testemunho do potencial da cooperação global, fornecendo uma plataforma para pesquisas científicas que beneficiam quase toda a humanidade.


Olhando para o futuro, as possibilidades de exploração espacial parecem ilimitadas. Perspectivas como missões a Marte ou o desenvolvimento do turismo espacial são apenas algumas das oportunidades emocionantes no horizonte. Esses empreendimentos não só prometem aumentar nosso conhecimento, mas também impulsionar um maior crescimento tecnológico e econômico. Por exemplo, o conceito de mineração de asteroides poderia liberar vastos recursos, aliviando a escassez de materiais na Terra.


Além disso, a exploração espacial tem o potencial de unificar a humanidade de uma maneira que poucas outras atividades podem fazer. A visão da Terra vista do espaço, “uma preciosa e frágil bola de vida pendurada no vazio do espaço” (Edgar Mitchell, astronauta da Apollo 14, 1971), ressalta nossa existência coletiva e a necessidade de colaborar na proteção de nosso lar.

 

Bibliography


Hobe S., The Impact of New Developments on International Space Law (new actors, commercialization, privatization, increase in number of “space-faring nations”, etc.), UNOOSA, 2010: https://bit.ly/4ct4VSE.


Baiocchi D., Welser W. IV, The Democratization of the Space, New Actors Need New Rules, “Foreign Affairs”, vol. 94, n. 3, may/june 2015.


Sommariva A., The Evolution of Space Economy: The Role of the Private Sector and the Challenges for Europe, ISPI, 2020: https://bit.ly/4c6y1rk.


Jakhu R., The Effect of Globalisation on Space Law, in S. Hobe (ed.), Globalisation: The State and International Law, Stuttgart, 2009.


Giaccio F., L’Italia e la Space Diplomacy: le lettere di Amaldi e la nascita dei programmi spaziali europei, in Annali del Dipartimento di Scienze Politiche. Università degli Studi della Campania “Luigi Vanvitelli”, Edizioni scientifiche italiane, Napoli, 2022.


Mauro R., La frontiera della space economy, in Pandora Rivista, 21, may, 2021.ESA, https://www.esa.int/About_Us/Corporate_news/ESA_s_Purpose

Brachet G., From initial ideas to a European plan. GMES as an exemplar of European space strategy. Space Policy, 2004



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