Mariana Monteiro Pillar
Andressa Farias Borges
As recentes enchentes que elevaram os níveis dos rios no Rio Grande do Sul, causaram destruições incalculáveis, famílias desabrigadas, centenas de mortes humanas e milhares de não-humanas. Assim, diante da maior tragédia da história do povo gaúcho, o presente estudo traça discussões de ordem socioambiental, mas principalmente reflete acerca da inexistência de políticas voltadas aos animais, vítimas invisíveis dos desastres ambientais.
Em termos humanos um desastre é definido como evento catastrófico, por exceder a capacidade de uma comunidade em atuar sem assistência. Na maioria das situações os eventos de catástrofes afetariam apenas os humanos, porém, na atualidade, os seres sencientes são afetados em grande quantidade e possuem carência de recursos para amenizar as consequências de um desastre. Nesse sentido, os desastres prejudicam de forma geral, tanto humanos, quanto não humanos ( Ética Animal, 2024).
Frente a essa nova realidade, ao vivenciar a maior tragédia hídrica da história do estado, além das vítimas humanas milhares de não humanos foram atingidos, haja vista os arranjos familiares. Na atualidade as famílias estão optando em grande medida por adotar animais de companhia a ter filhos humanos, diante disso, segundo dados divulgados pelo gabinete da causa animal da capital do Estado do RS, a população de cães e gatos é de cerca de 815 mil animais em Porto Alegre. A estimativa é de que entre os meses de julho e outubro de 2023, em quase cinco mil domicílios, haja pelo menos 533.873 mil cães e 281.532 gatos em toda a cidade ( Gabinete causa animal de Porto Alegre, 2023).
Nesse sentido, quando catástrofes climáticas como essa acontecem, além de todas as questões sociais e ambientais é necessário repensar acerca dos direitos dos animais atingidos, haja vista que quanto maior a incidência de famílias multiespécie, maiores as implicações na sociedade. Além disso, faz-se urgente o repensar do status moral destinado aos animais através da ética animalista que considera o sofrimento dos sencientes como sujeitos de uma vida (Perrota, 2022).
A maior catástrofe traz à tona a indispensabilidade da adoção de políticas públicas e morais capazes de salvar a vida de não humanos, ocorre que infelizmente devido ao antropocentrismo que assola a sociedade, ainda hoje, os interesses são encarados como distintos. Logo, a prioridade é promover o salvamento dos primeiros em detrimento dos demais. Assim sendo, ao considerar os seres sencientes como sujeitos morais e igualmente vítimas de desastres, evidências a ideia de que todas as vidas são igualmente importantes, pois, a mera compaixão dos tutores com os animais não é suficiente (Perrota, 2022).
Importa mencionar que esse cenário não é prerrogativa essencialmente gaúcha, em outros desastres ambientais que atingiram o país, a situação dos animais foram semelhantes, como foi o caso do desastre de Brumadinho e Mariana. Em todos esses casos eles foram deixados para trás, sob ordem de que os animais não poderiam ser socorridos juntamente com seus tutores, pois a prioridade eram os humanos (Perrota, 2022).
No direito comparado, relatos demonstram a semelhança, como no caso do Furacão Katrina em 2005, em que os tutores foram obrigados a abandonar seus animais de companhia, pois de acordo com a legislação dos EUA era proibido transportar-los em veículos públicos, como consequência, milhares foram abandonados à própria sorte (Perrota, 2022).
Tais atitudes, encontram respaldo nos ideais antropocêntricos e especistas que norteiam a sociedade. Frente a essa realidade, surge o questionamento: quais vidas merecem serem salvas? Apenas as humanas? Humanas e de animais que configuram famílias multiespécies? E os animais considerados como de consumo, merecem morrer? Eis um dilema ético que precisa ser debatido.
Situações de desastres demonstram a inexistência de leis, protocolos ou mecanismos governamentais que regulamentam o salvamento de animais, denotando assim que vidas humanas são as únicas incluídas nos planos de contingências dos Estados. Ficando os animais em situação de vulnerabilidade social, já que quando os tutores demonstram interesse em realizar seu salvamento, acabam impedidos pelo Estado (Perrota, 2022).
A relação entre animais e humanos sempre foi alvo de debate global, diante disso, em 1975 o filósofo Peter Singer publicou a obra Libertação Animal, em que defende a luta em relação aos seres sencientes, estabelecendo a inexistência de paradigmas para menosprezar a dor de um animal em relação à dor humana. Singer (2002) defende a vertente utilitarista, nesse segmento a morte dos animais para alimentação para o filósofo, é aceitável, desde que respeitada a sua dignidade e feita de acordo com os comandos de bem estar animal.
Em termos de produtos de origem animal, o Brasil lidera o ranking, assim como o Estado ora atingido, ocorre que a prática da pecuária é devastadora para os seres sencientes assim como para o meio ambiente, corroborando com o aquecimento global e consequentemente com catástrofes climáticas como a vivenciada ( Toledo, 2021).
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2022 revelavam que mais de 200 milhões de animais são criados para a indústria do consumo no Rio Grande do Sul. Estatisticamente falando, esse número representa 93% do total da população brasileira, que é de 215 milhões de pessoas. Significa dizer que o país vivencia a maior catástrofe de vidas não-humanas da sua história (Mfa-Brasil, 2024).
Segundo dados disponibilizados pela Organização Avícola, o Rio Grande do Sul chegou a marca de aproximadamente 1 milhão de vidas sencientes mortas, nesses números estão incluídos cerca de 400 mil pintinhos, 552 mil galinhas poedeiras e 12,6 mil porcos. As estimativas não são concisas quanto ao número de bovinos, ovinos e equinos (As gov ,2024).
A grande maioria desses animais viviam em sistema de confinamento, acarretando em mortes cruéis, sem a mínima chance de escapar. Após a baixa das águas, cenas dos animais mortos um sobre os outros denotam o desespero vivenciado até a morte dolorosa por afogamento. Boa parcela da sociedade trata essas mortes como prejuízo econômico, entretanto, são seres comprovadamente sencientes, isso implica dizer que eles sofreram de forma consciente enquanto aguardavam o fim trágico (Mfa-Brasil, 2024).
O confinamento animal é prática comum na indústria intensiva da pecuária. Nesse segmento os animais vivem em condições péssimas em virtude de espaços mínimos, com alimentação desapropriada, contribuindo assim para a retenção dos instintos naturais e o sofrimento. Esse último se dá de forma física e psicológica. Entretanto, essa prática necessita ser enquadrada como crime previsto no artigo 32 da Lei nº 9.605/98, pois há violação aos princípios em relação às estruturas da proteção animal. De igual modo, mediante às normas jurídicas anti crueldade aos animais prevista no art. 225, §1°, inciso VII, da Constituição Federal. ( Rammê, 2020).
O sofrimento causado aos seres sencientes além de configurar prática imoral, se mostra totalmente desnecessário, pois atualmente a pecuária já conta com alternativas como a do livre confinamento (Rammê, 2020). Se a adoção de tais medidas já fosse seguida no Rio Grande do Sul muitas vidas teriam tido a oportunidade de lutar pela sobrevivência, já que não estariam presas em baias de extermínio, sem direito à liberdade de locomoção.
Os seres sencientes utilizados na indústria da carne são invisíveis causando dor e sofrimento a bilhões de suínos, bovinos e aves, por se tratar de mecanismo que visa apenas o lucro, ignorando totalmente a questão moral e ética acerca do bem-estar. ( Rehbein, Rodrigues, 2024).
Nussbaum (2023) retrata a instrumentalização de animais de fazendas como um “horror moral” e clama por uma proteção moral e jurídica para esses. Ainda segundo a filósofa, embora a sociedade desconheça ou escolha ignorar, os suínos são os animais mais semelhantes aos humanos em termos anatômicos que existem, seu sistema interno se mostra muito similar, além de serem criaturas extremamente inteligentes, por vezes, mais racionais que os próprios cachorros e ainda assim, estão entre as principais vítimas da carnificina humana.
Caso semelhante é dos bovinos que embora considerados apenas como bens de consumo ou como produto da pecuária, são seres únicos, apresentando características e personalidades próprias. São altamente sensíveis e demonstram seus sentimentos através da vocalização transmitida pelos rugidos, bem como pelo olhar (Pillar, 2024).
Joy (2014) corrobora ao afirmar o que segue:
Amamos os cães e comemos as vacas não porque cães e vacas sejam fundamentalmente diferentes – assim como os cães, as vacas têm sentimentos, preferências e consciência -, mas porque a percepção que temos deles é diferente. E consequentemente, a percepção que temos de sua carne também é diferente (Joy, 2014, p. 17).
A tragédia do RS retrata mais uma vez o antropocentrismo que impera na sociedade, aliado aos ideais especistas, haja vista que os animais de fazendas não tiveram a mesma sorte que alguns animais de companhia, rebanhos inteiros morreram afogados. Assim, além de serem explorados desde o nascimento, os que sobreviveram, possuem um destino incerto (Mfa-Brasil, 2024).
Considerando o fato de que a sociedade se acha superior aos animais, embora depois de muita luta pela sobrevivência, o destino provável será o abate, principalmente diante da necessidade de alavancar a economia do estado. Entretanto, onde está a moral de sacrificar animais que lutaram arduamente pela sobrevivência.
Frente a essa realidade, Joy (2014) é enfática ao afirmar que os animais são tratados como mercadorias, em decorrência disso, possuem um fim predeterminado, logo, vítimas das carnificinas não são foco de proteção, principalmente em se tratando de desastres ambientais onde não existem planos de segurança para salvar não humanos, em especial, os de fazenda.
Enquanto a concretização efetiva dos direitos dos animais de fazenda não ocorrer, e esses seres não ganharem a devida importância, o direito será conivente com a morte de vítimas invisíveis, que são vistas, porém não são reconhecidas. Embora existam dificuldades práticas e jurídicas, se faz urgente criar mecanismos para coibir a prática danosa a vida dos animais de fazenda, seja no dia a dia, seja em situações de catástrofes. Frente a essa triste realidade a senciência animal necessita ser reconhecida mundialmente , para assim ocorrer a elevação da proteção jurídica dos animais no Direito brasileiro (Rammê, 2020).
Neste seguimento Naconecy (2014), defende a capacidade dos animais de sentir os mais diversos sentimentos e principalmente aqueles que lhe causam dor e sofrimento, eles possuem consciência acerca do desejo do fim, pois tudo ao seu entorno é compreendido. Além disso, os animais também são capazes de demonstrar emoções como estresse e frustração.
Logo, transcrever a morte de milhares de vidas não humanas em cédulas, somente agrava a vulnerabilidade desses seres cada vez mais, pois é sem dúvidas para além de um problema financeiro é um problema social, desencadeado pela assimetria informacional que dificulta a implementação de direitos abstratamente previstos.
Nesses termos, até que sobrevenha direitos destinados a esses animais, uma mitigação ao problema, se daria a partir dos ideais utilitaristas, criando uma legislação a nível federal que vise a transparência de produtos advindos de animais, denunciando o confinamento em gaiolas, fiscalizando de forma assertiva o bem-estar animal em todos os níveis, bem como promovendo a educação animalista para quiçá tragédias como essa não se propaguem (Toledo, 2021).
Diante do exposto, embora emblemática, a catástrofe gaúcha é apenas um pequeno exemplo da força da natureza que vem sendo intensificada cada vez mais por conta do capitalismo e o hiperconsumo. O ideal propagado é de produzir mais, com custos reduzidos, acarretando na destruição de ecossistemas inteiros.
Em termos dos direitos dos animais vítimas de desastres, assim como nas demais lutas, os animais são vistos como vítimas secundárias. A grande maioria da sociedade não está preocupada com a individualidade e a capacidade de sofrer de forma consciente de cada animal, mas sim com o impacto econômico que as mortes irão acarretar, tendo em vista que a maioria desses animais serviriam para abastecer o mercado da carne gaúcho e exterior. A garantia dos direitos dos animais por hora ainda caminha a passos lentos, se tornando um problema social e vexatório para o Estado do Rio Grande do Sul, pois se trata de um dos estados brasileiros que mais produz animais de fazendas e não possui políticas de segurança para esses.
Assim, diante da maior tragédia, em que o mundo voltou os olhos para o Sul, também constatou a ineficiência em salvar os animais, em especial, os de fazenda. Nesse tocante, frente a realidade vivenciada, a exploração de animais influencia diretamente na crise climática pois representam parcela significativa dos desmatamentos brasileiro. A dificuldade em salvar animais de fazenda se deu em virtude das fortes evidências do descaso social, pois as vidas deixadas para morrer eram vistas apenas como mais uma perda monetária, agravando ainda mais a situação desses, ao passo que direitos básicos não foram garantidos, corroborando para a maior carnificina da história.
Diante do exposto, esse trabalho, serviu para gerar uma reflexão, acerca da morte das vítimas invisíveis, pois toda a sociedade consumista de produtos de origem animal possuem sua parcela de culpa na morte de cada ser que foi vítima duplamente da sociedade. Espera-se que políticas públicas destinadas a resguardar a vida de não-humanos vítimas de desastre sejam criadas.
Referências
ÉTICA, Animal: Animais em desastres naturais. Disponível em: https://www.animal-ethics.org/animais-desastres-naturais/#:~:text=Os%20animais%20que%20vivem%20na,%2C%20cinzas%2C%20lava%20ou%20neve . Acesso em: 24 de mai. de 2024.
JOY, Melanie. Por que: Amamos cachorros, comemos porcos e vestimos vacas. São Paulo: Cultrix, 2013.
MFA-BRASIL Mercy For Animals Brasil, Até agora, quase 1 milhão de animais explorados para consumo morreram em enchentes do Rio Grande do Sul. Instagram. Publicado em: 29 de mai. de 24.
NUSSBAUM, Martha C. Justiça para os animais: nossa responsabilidade Coletiva. Tradução Ricardo Doninelli Mendes - São Paulo: WMF, 2023.
PERROTA, Ana Paula. Animais Domésticos e Desastres: entre a preocupação sanitária e humanitária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 37, nº 108, 2021.
PILLAR, Mariana Monteiro. Direito Animal: o paradoxo de direitos entre os grandes primatas e os bovinos. In: RODRIGUES, Nina Trícia Diconzi; REHBEIN, Katiele Daiana da Silva; PILLAR, Mariana Monteiro (Org). Direito Animal. Cruz Alta, Ilustração, 2024.
RAMMÊ, Rogério Santos. Confinamento animal na perspectiva da proteção constitucional dos animais. Revista Direito Ambiental e sociedade, Volume 10, n.2, maio e agosto de 2020 (p.292-314).
REHBEIN, Katiele Daiana da Silva. RODRIGUES, Nina Trícia Disconzi. A invisibilidade dos animais na indústria da carne. Revista Brasileira de Direito Animal- Brazilian Animal Rights Journal, Salvador, v.19, n.1,p.1-21,Jan/Abril-2024. Disponível em: www.rbda.ufba.com.br. Acesso em: 28 de jul de 24.
SINGER, Peter. Animal Liberation: The Definitive Classic of the Animal
Movement. Nova York Harper Collins Publishers, 2002.
TOLEDO, Taís. Direito Animal e Pecuária: Questões controvertidas e caminhos para a evolução na tutela jurídica dos animais de produção, 2021.
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