Maria Eduarda Ardinghi Brollo
“A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!… (Rio, João do, 1908, p. 2)”.
Tema central dos estudos acerca de sustentabilidade, a discussão sobre as chamadas cidades resilientes e sustentáveis se apresenta como complexa e diversificada. O Objetivo de Desenvolvimento Sustentável de nº 11 (“Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis”) da Agenda 2030 para Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas elenca 11 subtópicos acerca dessa meta, e, curiosamente, em nenhuma deles a palavra “rua” é mesmo citada. E por que deveria?
Desde 1961 (ou seja, muito antes de sequer pensarmos no entrelaçamento entre sustentabilidade ambiental e qualidade de vida urbana), com a publicação da primeira edição de “The Death and Life of Great American Cities” (traduzido no Brasil como: “Morte e Vida das Grandes Cidades”) pela ativista Jane Jacobs, é que a rua e as calçadas têm sido colocadas como fatores determinantes da qualidade de vida urbana.
A autora, aliás, assinala justamente que a tradição do planejamento urbano ortodoxo (gerador de uma série de problemáticas que lidamos, como a ausência de segurança ou a de moradia de qualidade) nasce de uma negação da rua como a natureza mais elementar das grandes cidades – que hoje constituem o ambiente onde a maioria da população global vive.
O impacto da industrialização no súbito crescimento das metrópoles mundiais fez da cidade um espaço “caótico”. É esse “caos” que os planejadores evitam e buscam mitigar que, acima de qualquer coisa, constitui a identidade do espaço urbano. As grandes cidades que Jacobs trata (como Nova Iorque, Chicago ou Baltimore) não são, assim, uma mera tradução populosa da vida nas pequenas cidades e dos subúrbios.
A Cidade - Jardim, como sendo uma das três grandes teorias pioneiras do pensamento urbanista ortodoxo, foi planejada por Ebenezer Howard em 1898 na Alemanha e traduzida por muitos como Lewis Mumford nos Estado Unidos dos anos de 1920, e visava a decomposição da densidade do espaço urbano para a adequação da natureza como elemento principal da cidade. Na perspectiva da Cidade-Jardim, o espaço urbano só funciona se delimitado para um número de pessoas e deve privilegiar, sobretudo, o resgate da estética da natureza em seu estado “puro”. Nesse sentido observa Jacobs:
As ideias de Howard e Geddes foram adotadas com entusiasmo nos Estados Unidos durante os anos 20 e ampliadas por um grupo de pessoas extremamente eficientes e dedicadas, entre elas Lewis Mumford, Clarence Stein, o falecido Henry Wright e Catherine Bauer. Embora se definissem como planejadores regionais, mais recentemente Catherine Bauer denominou esse grupo os "descentralizadores", nome mais acertado, uma vez que o resultado imediato do planejamento regional, segundo a visão deles, deveria ser descentralizar as grandes cidades, reduzi-las, e dispersar as empresas e a população em cidades menores e separadas. (JACOBS, 2011, p. 24)
De mesmo modo, é também violador da viabilidade socioeconômica e da saúde de um espaço urbano ou metropolitano a proposta do City Beautiful aventada no Columbiam Exposition of Chicago em 1893 e a utópica Ville-Radieuse de Le Corbusier em 1930. O City Beautiful, da mesma maneira que a Cidade-Jardim, primava por um planejamento calcado na estética “anti-caótica”, baseando-se na tradição do pensamento estético e lógico-racional ocidental de “ponderação nas formas”. O City Beautiful optava pelo encapsulamento da interação social em grandes obras arquitetônicas que seriam os prédios públicos e Civic Centers, construídos com influências da arquitetura de bulevares e das referências aos opulentos prédios da Antiguidade Clássica e barrocos.
Em posição estética diferente, o plano de Le Corbusier abraçava a verticalização, mas não se diferenciava da Cidade- Jardim e do City Beautiful na negação das calçadas e ruas. Para esse arquiteto francês, a população se organizaria em grandes prédios que propiciassem uma otimização do aproveitamento do solo e que fossem cercados, radialmente, por parques e natureza, de modo que a circulação de pedestres se reservasse nesses espaços. Já para a circulação de veículos, visava deslocá-las aos subterrâneos e a vias expressas e verticais, sem cruzamentos. A Ville Radieuse, no entanto, não possuía apenas um propósito arquitetônico, senão social:
Le Corbusier planejava não apenas um ambiente físico; projetava também uma utopia social. A utopia de Le Corbusier era uma condição do que ele chamava de liberdade individual máxima, com o que ele aparentemente se referia não à liberdade de fazer qualquer coisa, mas à liberdade em relação à responsabilidade cotidiana. Em sua Ville Radieuse, supostamente ninguém teria mais a obrigação de sustentar o irmão. Ninguém teria de se preocupar com planos próprios. Ninguém deveria ser tolhido. (Ibidem, p.25)
É nesse ponto que Jacobs demonstra que as propostas determinantes acerca do planejamento urbano e que construíram um pensamento urbano ortodoxo são lacunares por elevarem valores sócio-organizacionais que são estrangeiros a vivência das grandes cidades.
Da mesma forma, a lógica do fluxo de capital e da especulação imobiliária segue tal princípio: baseando-se no proposto pela organização “Cidade-Jardim Beautiful Radieuse”, bancos, construtoras e imobiliárias investem na revitalização de bairros tidos como “caóticos”, “mal planejados”, expulsando, via de regra, a população de baixa renda ali presente, e atraindo novos moradores de média e alta concentração de renda que passam a morar sob as regras arquitetônicas e urbanas do pensamento ortodoxo.
Como esse plexo valorativo, por excluir e lutar contra a natureza essencial das cidades, está fadado ao insucesso, permitindo um aumento da falta de segurança tão primaz na vida em sociedades urbanas, o novo grupo de moradores do bairro revitalizado permanece pouco tempo residindo no espaço e o abandona tendo como causa a “criminalidade nas ruas”. Logo, o investimento perde a capacidade de retorno e o interesse privado busca um novo bairro para revitalizar. Enquanto isso, o Poder Público adapta o, agora, revitalizado e abandonado bairro “perigoso” para acomodar, novamente, populações de menor renda, criando os conjuntos habitacionais construídos, também, na lógica da “Cidade-Jardim Beautiful Radieuse”. O bairro, assim, fecha o ciclo que o leva ao fracasso em pontos de vista sociais e habitacionais.
O investimento nas revitalizações faz parecer justamente que o capital não tem sido aplicado para a melhoria do espaço urbano, o que Jacobs diz ser quase um mito: “Há um mito nostálgico de que bastaria termos dinheiro suficiente” (Jacobs, 2011, p. 14). A verdadeira questão é que esse capital é tão mal aplicado pelos investidores particulares e, sobretudo, pelo Poder Público que ele mina a própria possiblidade de rentabilidade dos espaços e acaba, assim como os carros, contribuindo para a péssima qualidade de vida que alguns bairros e cidades oferecem.
Diante da constatação que o pensamento urbano ortodoxo é inadequado para um planejamento célere dos espaços urbanos, Jane Jacobs, passa a propor soluções baseadas em observações de vivências bem-sucedidas. É desse caleidoscópio de experiências que a autora aponta o ponto catalisador para o planejamento urbano:
Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e, embora se trate de vida, não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma artística da cidade e compará-la à dança – não a uma dança mecânica, com os figurantes erguendo a perna ao mesmo tempo, rodopiando em sincronia, curvando-se juntos, mas a um balé complexo, em que cada indivíduo e os grupos têm todos papéis distintos, que por milagre se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações. (Ibidem, p.22)
Apesar do que a autora propôs nos anos 60, a industrialização tardia em muitos países do Sul Global e as novas formas de globalização ainda se sustentam pelo planejamento urbano ocidental, estético e lógico-racional da “Cidade-Jardim Beautiful Radieuse.” De forma ainda mais agravante, as atuais teorias de aplicação de tecnologias em ambientes urbanos, àquelas que se relacionam com a produção de um Desenvolvimento Sustentável através de espaços urbanos mais resilientes, não apenas se adequam ao pensamento urbanístico (anacrônico) ortodoxo, mas acabam reforçando-o, em uma troca de “alhos por bugalhos” entre tecnologia e sustentabilidade.
Dessa forma, entende-se que planejamento urbano, no passado, mas principalmente no presente, deve sempre utilizar de suas ferramentas para promover um espaço que seja funcional para a estruturação das relações sociais e ambientais, sendo essa a melhor forma de promover a permanência de um espaço organizado, orgânico, sensível e, portanto, inteligente, que seja interessante ao investimento particular, ao interesse público e a utilização sustentável pelas população urbana que o tutela e que, por ele, devem ser tutelada.
Referências
JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.
OBJDIGITAL.BN.BR/. A alma encantadora das ruas. Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/alma_encantadora_das_ruas.pdf. Acesso em: 8 de maio de 2020
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/pos2015/ agenda2030/>.
Acesso em: 13 de março de 2022.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. Tradução Rubens Eduardo Frias. São
Paulo: Centauro, 2001.
GEHL, Jan. Cidades para Pessoas. Tradução Anita Di Marco. 2. Ed. São Paulo:
Perspecitva, 2013.
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