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  • Foto do escritorLeura Dalla Riva

O que é a "Tese do Marco Temporal" e porque ela precisa ser julgada inconstitucional pelo STF

No próximo dia 30/08, o Supremo Tribunal Federal (STF) dará andamento ao julgamento da “Tese do Marco Temporal” no RE 1.017.365 ao qual a Corte atribuiu “repercussão geral” em 2019. O caso envolve a Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ, no estado de Santa Catarina e esteve suspenso desde 2021 por pedido de vistas do Ministro Alexandre de Moraes. A decisão do STF afetará outros 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas pendentes.


O território em disputa é ocupado pela população indígena Xokleng e está em disputa por agricultores da região. O recurso envolve um pedido de reintegração de posse movido pelo Instituto do Meio a Ambiente de Santa Catarina (IMA) contra a Funai e indígenas do povo Xokleng. O argumento do IMA-SC é de que a área não estava ocupada em 5 de outubro de 1988, devendo-se aplicar a “tese do marco temporal” no caso. O povo Xokleng, por sua vez, alega que a terra estava desocupada em 1988 porque eles haviam sido expulsos do território.


A "tese do marco temporal" é um argumento que passou a ganhar destaque a partir de 2009 com o julgamento do caso “Raposa Serra do Sol” no qual o STF firmou entendimento limitando os direitos territoriais de povos indígenas com base na ideia de que só teriam direito às terras que estavam efetivamente ocupando na data da promulgação da Constituição Federal de 1988 (5/10/88) (STARCK; BRAGATO, 2019).

Até o momento, o Ministro Edson Fachin, relator do RE 1.017.365, apresentou voto contrário ao marco temporal e o Ministro Nunes Marques apresentou voto favorável à tese. O Supremo também decidiu neste mês de agosto (2023) que o Ministro André Mendonça, indicado por Bolsonaro e ex-Advogado Geral da União que já se manifestou favorável a tese, poderá votar no caso (CASTRO, 2023).

A Constituição de 1988 reconhece aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (art. 231) e define que “São terras tradicionalmente ocupadas […] as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

O texto constitucional, portanto, não fixa nenhum marco temporal para a ocupação dessas terras, motivo pelo qual se argumenta que a “tese do marco temporal” restringe direitos constitucionais dos povos indígenas (PEGORARI, 2017) e ignora a história de desapropriação forçada, violência e migração que muitas vezes levaram os povos indígenas a perderem suas terras tradicionais ao longo dos anos e, especialmente, durante o período da Ditadura Militar que antecedeu a promulgação da CRFB/1988.

Concomitantemente ao trâmite do julgamento perante o STF, a Câmara dos Deputados aprovou em regime de urgência o PL 490/2007 (PL n° 2903/2023 no Senado) que institui o marco temporal depois que Rosa Weber marcou a retomada do julgamento sobre o assunto. O Presidente do Senado, contudo, informou que a matéria não seguirá regime de urgência para votação perante a casa (Pontes, 2023). Em audiência pública perante a Comissão de Direitos Humanos (CDH), Senadores destacaram que o projeto é inconstitucional porque a Constituição de 1988 não estabeleceu marco temporal para os direitos territoriais dos povos indígenas (Agência Senado, 2023).

Os debates sobre a "tese do marco temporal", tanto no Judiciário quanto no Legislativo, envolvem a disputa entre os povos indígenas e o agronegócio brasileiro que ganhou muita força durante o governo Bolsonaro juntamente como a repressão e perseguição dos povos indígenas, como vimos com o caso Yanomami (BRUM, 2023).


O agro é um dos principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estuda e desmatamento no Brasil (como ja evidenciamos em: MILCHERT, 2023), sendo um modelo profundamente predatório à biodiversidade e a saúde humana, pois altamente dependente de transgênicos e agrotóxicos e relacionado, por exemplo, com o aumento dos índices de câncer e a morte de abelhas. Os povos indígenas, como apontam diversos estudos (MELLO; PEÑAFIEL, 2020; SOUZA; GARCIA; 2021; GAONA PANDO, 2013), possuem uma relação de interdependência com a Natureza, promovendo sua preservação. As terras indígenas, por exemplo, assim como as unidades de conservação, apresentam percentuais muito baixos desmatamento. Como destaca o MapBiomas (2023), “nos últimos 30 anos, as terras indígenas perderam apenas 1% de sua área de vegetação nativa, enquanto nas áreas privadas a perda foi de 20,6%”.


A decisão a ser tomada pelo Supremo representará, portanto, a escolha entre privilegiar o argumento da “segurança jurídica” em nome dos interesses de um modelo predatório e poluidor de produção de commodities e mal uso da terra versus reconhecer os direitos originários dos povos indígenas consagrados na CRFB/1988 e proteger os modos de convivência harmônica com a Natureza.

Em visita realizada ao território no ano de 2016, presenciei relatos sobre a luta do povo Xokleng pela demarcação e pela sobrevivência da língua e demais manifestações culturais que foram sendo "esquecidas" ao longo dos anos, bem como o impacto que as igrejas (especialmente evangélicas) tiveram sobre o apagamento da cultura da comunidade ao adentrarem o território nas últimas décadas. Em nome do projeto Ruptura, organização que nasceu e atua na região do Vale do Itajaí catarinense, manifesto nosso repúdio à tese do marco temporal e apoio aos povos indígenas de todo o Brasil e seus direitos constitucionais.

Referências

BRUM, Eliane. El genocidio yanomami tiene las huellas de Bolsonaro. 01 fev. 2023. El País. Disponível em: https://elpais.com/opinion/2023-02-01/el-genocidio-yanomami-tiene-las-huellas-de-bolsonaro.html. Acesso em 26 ago. 2023.

CASTRO, Grasielle. STF decide que Mendonça poderá votar no caso do marco temporal de terras indígenas. Jota. 15 ago. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-decide-que-mendonca-podera-votar-no-caso-do-marco-temporal-de-terras-indigenas-15082023. Acesso em 26 ago. 2023.

GAONA PANDO, Georgina. El derecho a la tierra y protección del medio ambiente por los pueblos indígenas. Nueva antropol, México, v. 26, n. 78, p. 141-161, jun. 2013 . Disponível em: http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0185-06362013000100007&lng=es&nrm=iso. Acesso em 26 ago. 2023.


Marco temporal é inconstitucional, defendem debatedores na CDH. 29 jun. 2023. Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/06/29/marco-temporal-e-inconstitucional-defendem-debatedores-na-cdh. Acesso em 26 ago. 2023.


Marco temporal: entenda por que julgamento no STF pode definir o futuro das terras indígenas. Conectas. 24 ago. 2021. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/marco-temporal-entenda-a-importancia-do-julgamento-no-stf-para-os-indigenas/. Acesso em 26 ago. 2023.



MELLO, Patrícia Perrone Campos; PEÑAFIEL, Juan Jorge Faundes. Povos Indígenas e proteção da natureza: a caminho de um “giro hermenêutico ecocêntrico. Revista brasileira de Políticas públicas. V. 10, n. 3, dez. 2020.

MILCHERT, Artur Bernardo. O aquecimento global e suas causas: conheça os setores econômicos mais poluentes. Ruptura. 19 jul. 2023. Disponível em: https://www.projetoruptura.org/post/o-aquecimento-global-e-suas-causas-conhe%C3%A7a-os-setores-econ%C3%B4micos-mais-poluentes. Acesso em 26 ago. 2023.

O que é marco temporal e quais são os argumentos favoráveis e contrários. Câmara dos Deputados. 29 maio 2023. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/966618-o-que-e-marco-temporal-e-quais-os-argumentos-favoraveis-e-contrarios/. Acesso em 26 ago. 2023.


PEGORARI, Bruno. A tese do “marco temporal da ocupação” como interpretação restritiva do direito à terra dos povos indígenas no Brasil: um olhar sob a perspectiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos. ARACÊ – Direitos Humanos em Revista, Ano 4, Número 5, Fevereiro 2017. Disponível em: https://arace.emnuvens.com.br/arace/article/view/144/79. Acesso em 26 ago. 2023.

PONTES, Felipe. Entenda o que está sendo julgado no caso do marco temporal. Sessão poderá ser acompanhada por telão na lateral do Supremo. 07 jun. 2023. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2023-06/entenda-o-que-esta-sendo-julgado-no-caso-do-marco-temporal. Acesso em 26 ago. 2023.

SOUZA, Hélcio Marcelo; GARCIA, Edenise. Povos indígenas são essenciais para conservação e bioeconomia da floresta. Galileu. 19 abr. 2021. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/ciencia/meio-ambiente/noticia/2021/04/povos-indigenas-sao-essenciais-para-conservacao-e-bioeconomia-da-floresta.ghtml. Acesso em 26 ago. 2023.


STARCK, Gilberto; BRAGATO, Fernanda Frizzo. O impacto da tese do marco temporal nos processos judiciais que discutem direitos possessórios indígenas. revista direitos sociais e políticas públicas (unifafibe), v. 8, n. 1, 2020.

Para saber mais sobre o povo Xokleng: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Xokleng


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