Maria Eduarda Ardinghi Brollo
Como vimos na primeira parte desse texto, a associação entre o espaço urbano e as mudanças climáticas têm se intensificado nas discussões públicas. E um dos principais pontos levantados, para além da resiliência urbana, é a questão das emissões de gases de efeito estufa (GEE).
Ocorre, no entanto, que, como demonstrado por dados coletados em 2022 pelo Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima, os setores de maior contribuição para a emissão bruta são “mudança de uso da terra e floresta” e “agropecuária”, ambos extremamente presentes em regiões rurais das cidades.
No sentido do primeiro setor, é interessante pontuar que a mudança de uso de terra e floresta impacta no processo de emissão e de reabsorção dos GEE, reduzindo significativamente, por meio do desflorestamento, a capacidade de reequilíbrio natural do sistema de gases. A agropecuária caminha lado a lado com o primeiro setor, muitas vezes sendo instalada em áreas de desflorestamento no Centro-Oeste e no Norte do país, e sendo emissora em sua atividade primária.
Foi assim que o questionamento acerca das propostas de redução de GEE no Brasil foi feito: Será que essas propostas dialogam com a nossa realidade?
Em termos de propostas para a redução de GEE mais atuais, o tema dos veículos elétricos e do mercado de carbono parecem despontar. No caso dos veículos elétricos, a reposta, quando da sobreposição dos números é simples: não é a estratégia que abrange nossa realidade de emissão e não reabsorção de GEE. Isso não significa dizer que medidas locais e regionais para melhoria das frotas e redução do uso de combustíveis fósseis não seja crucial. É. Mas, isoladamente ou, mesmo como proposta principal, não se reflete nos setores de impacto.
As propostas de mercado de carbono, por outro lado, parecem, na superficialidade, dialogar com os números apresentados. Em essência e de forma muito reduzida, um mercado de carbono é aquele que permite que atores que possuam áreas de reabsorção ou emitam abaixo de uma determinada cota de emissão de carbono sejam compensados financeiramente por atores que extrapolem esse limite.
Fato é que, idealmente, o modelo de marcado de carbono dialoga com a redução do desflorestamento e com o controle de emissões, porém, o projeto aprovado no final do ano passado na Câmara dos Deputados, o PL 2148/15, logo evidencia que essa conexão não se apresenta como cerne da política apresentada que não aborda diretamente o agronegócio, nem vem acompanhada de outras políticas transversais de melhor uso de terra, fiscalização ambiental e reforma agrícola, que legitimariam a ferramenta no contexto brasileiro.
Por fim, o mercado de carbono como proposto reflete uma problemática que a (pseudo) solução dos veículos elétricos também impõe: a reprodução ilimitada de uma noção eurocêntrica de desenvolvimento sustentável (Khalfan, 2023). Nesse sentido, e partindo dos diversos compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris de 2015, essas soluções “pop” apresentadas na discussão pública como invencíveis são as aplicadas e sugeridas pelos países de Norte Global e acabam por reforçar um modelo de dominação e colonialidade (Mignolo, 2017) que se encontra nas bases do problema das emissões desmedidas de GEE.
Nessa breve análise, pudemos identificar que as soluções popularmente conhecidas para a emissão de GEE nas discussões públicas no Brasil não dialogam com nossos números e privilegiam a realidade metropolitana sobre a realidade rural, onde se encontram os principais pontos de atenção em emissão e reabsorção de GEE na realidade nacional.
Interessante pontuar, ainda, que do ponto de vista da justiça climática (Robinson, 2021), são os indígenas, quilombolas, ribeirinhos e população rural que mais sofrem com o impacto das mudanças do clima, sobretudo mulheres, pretas e pardas nessa realidade. Assim, sob um olhar da promoção de uma transição energética justa e equitativa, o espaço rural deveria ser mais centralizado nas discussões e soluções propostas.
Até mesmo do ponto de vista orçamentário, pequenos municípios rurais tem uma reserva de arrecadação menor, com maior índice da cobrança de Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) do que de Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), culminando em valores orçamentários próprios muito menores do que os munícipios de perfil urbano (Leão,2015).
Com isso, o questionamento de se os esforços de melhoria de inventário de GEE no Brasil estão focados em soluções verossímeis para nossa realidade toma um rumo denso e importante, demonstrando que, por enquanto, embora as soluções populares apresentadas devam ser debatidas e são relevantes para o combate das mudanças do clima, estamos muito distantes de alcançar o núcleo do problema (e da solução) para as mudanças do clima no Brasil.
Referências:
KHALFAN, Ashfaq et al. Climate Equality: A planet for the 99%. OXFAM International, 2023. Available at: https://policy-practice.oxfam.org/resources/climate-equality-a-planet-for-the-99-621551/. Accessed: 18 Mar. 2024.
ROBINSON, Mary. Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
Mignolo, Walter . Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 32(94), e329402. Epub June 22, 2017. https://dx.doi.org/10.17666/329402/2017
LEÃO, C. G. ITR e IPTU : o contraste entre as finalidades sociais e a gestão praticada. Unifal-mg.edu.br, 2015.
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