Leura Dalla Riva
No último mês foram lançados os filmes "Oppenheimer" e "Barbie" que tiveram grande repercussão não apenas no cinema, mas em diversas publicações - inclusive de cunho filosófico [1]. Vale ressaltar de antemão que o debate aqui não envolve o enredo dos filmes em si, mas realizamos uma provocação sobre questões socioambientais a partir de alguns aspectos que envolvem ambas as produções cinematográficas.
Nesse sentido, optou-se por focalizar o conceito de Antropoceno como um desses aspectos, tendo em vista que o tema se mostra central na atualidade diante das emergências ecológicas e climáticas que destacamos diariamente em nosso projeto. Parece oportuno, portanto, pensar também os "sucessos" contemporâneos a partir dessas questões.
Contextualizando os filmes
J. Robert Oppenheimer foi um físico teórico norte-americano considerado o pai da bomba atômica durante a Segunda Guerra Mundial, tendo liderado o Projeto Manhattan e o laboratório de Los Alamos, no Novo México, onde a primeira bomba "Trinity" nuclear foi testada. Como resultado do sucesso dos trabalhos da equipe liderada por Oppenheimer, os EUA lançou os ataques nucleares sobre Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945, acelerando o fim da Segunda Guerra Mundial. Além da trajetória envolvendo a criação da bomba atômica, o filme realça como Oppenheimer, após, a guerra, passou a enfrentar desafios por suas opiniões políticas reticentes ao uso de armamentos nucleares e tenta retratar as controvérsias morais enfrentadas pelo cientista.
Barbie, por sua vez, é certamente a boneca ocidental mais famosa desde meados do século passado. A primeira Barbie foi fabricada pela empresa de brinquedos americana Mattel, em 1959 e, para alguns, desempenhou um papel significativo na cultura popular e no próprio movimento feminista por promover a imaginação, a criatividade e a aspiração profissional em meninas. A marca também enfrentou críticas relacionadas a estereótipos de gênero e padrões de beleza inalcançáveis e, nas últimas décadas, especialmente com o crescimento dos debates a respeito das representações de raça e gênero, a fabricante passou a diversificar a produção de bonecas, de modo a adequar-se às críticas crescentes e escapar do "padrão de beleza" reproduzido até então. A produção do filme, por sua vez, vem sendo elogiada por ser o primeiro dirigido exclusivamente por uma mulher que chegou ao faturamento de 1 bilhão de dólares e que busca realizar uma crítica a partir de questões de gênero e emancipação feminina.
Mas o que os filmes de Oppenheimer e Barbie têm em comum desde o ponto de vista socioambiental?
Um dos aspectos, como mencionado, que podem ser analisados nesse sentido é o conceito de Antropoceno. Explicamos o porquê...
Recentemente noticiamos (Newsletter #9) a descoberta de cientistas acerca do lago Crawford (em Ontario, no Canadá) que pode ser considerado uma das evidências de que a Terra teria entrado em uma nova era geológica, passando do Holoceno para o Antropoceno que seria marcado pelos impactos humanos sobre o planeta. Os sedimentos do lago demonstram a presença de resíduos da intensa queima de combustíveis fósseis e até mesmo o plutônio de testes de bombas nucleares. A partir desses dados, cientistas vem apontando que o "Antropoceno" teria iniciado com a década de 1950 no período da chamada "grande aceleração" quando a população humana e seus padrões de consumo aceleraram repentinamente e surgiu a disseminação de "materiais tecnológicos" onipresentes, como alumínio, concreto e plástico.
O Antropoceno, portanto, é a era dos impactos humanos sobre o Planeta, especialmente a partir do aprofundamento da "artificialização" da produção material da vida humana. Isso é muito evidente nos testes nucleares e no uso do plástico. Oppenheimer e Barbie são símbolos dessa nova era.
Oppenheimer e os resíduos nucleares no Antropoceno
A partir do desenvolvimento da bomba atômica em 1945, os testes nucleares continuaram a ser conduzidos por várias nações numa "corrida armamentistas" que ocorreu especialmente durante a Guerra Fria entre os EUA e a URSS. Como informa a própria ONU, "mais de dois mil testes nucleares foram realizados nas cinco décadas desde a primeira explosão" [2].
Os Estados Unidos conduziram muitos testes nucleares após 1945, tanto no continente quanto em áreas remotas, como no Atol de Bikini e em outros lugares. A União Soviética (URSS) também realizou uma série de testes nucleares após 1945 e desenvolveu um extenso arsenal nuclear. Além desses dois países, Reino Unido realizou seus primeiros testes nucleares em 1952, a França em 1960, a China em 1964, a Índia em 1974, o Paquistão em 1998 e a Coreia do Norte em 2006.
Os testes nucleares apresentam uma série de riscos significativos para o planeta e para a saúde humana. Dentre eles:
Contaminação por radiação: Os testes nucleares liberam enormes quantidades de radiação ionizante no ambiente. A exposição a essa radiação pode causar doenças graves, como câncer, mutações genéticas, danos aos órgãos e comprometimento do sistema imunológico. Esse processo também gera a contaminação ambiental a longo prazo que pode afetar ecossistemas, recursos hídricos e a cadeia alimentar, com possíveis efeitos negativos na saúde humana e na biodiversidade. Além disso, a disseminação de partículas radioativas pelo vento pode afetar áreas distantes do local do teste.
Efeitos climáticos, atmosféricos e sísmicos: Testes nucleares atmosféricos, onde as explosões ocorrem na atmosfera, podem causar alterações climáticas temporárias e potencialmente afetando padrões climáticos.Já os testes nucleares subterrâneos podem causar abalos sísmicos, levando a danos estruturais e preocupações com a segurança.
Deslocamento forçado de populações: Os testes nucleares muitas vezes exigem o deslocamento de populações locais, resultando em consequências sociais e econômicas para as comunidades afetadas.
Riscos geopolíticos: Os testes nucleares podem aumentar as tensões entre nações e contribuir para a escalada da corrida armamentista, como foi o caso durante a Guerra Fria.
A partir de 1996, muitos países assinaram o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT), que visa proibir todos os testes nucleares. Atualmente, o tratado foi ratificado por 176 Estados e assinado por 186, mas ainda não entrou em vigor [3].
Vale mencionar que o filme também retrata a figura de Edward Teller e suas tensões com Oppenheimer no que diz respeito à criação de uma bomba de hidrogênio. Em que pese não constar do enredo em razão do recorte temporal realizado, a "bomba H" foi desenvolvida por Teller em é milhares de vezes mais pontente que a bomba nuclear inicialmente desenvolvida no projeto Manhattan. A imagem abaixo é bastante ilustrativa dessa diferença:
Fonte: Cambio16
Esta semana os bombardeios nucleares de Hiroshima e Nagasaki (6 e 9 de agosto) completam 78 anos. Contudo, as tensões e o risco de um "suicídio coletivo" através do uso de armas nucleares existem ainda hoje e de maneira muito mais grave em razão da periculosidade dos armamentos desenvolvidos desde a de2cada de 50. Exemplo disso são ameaças de Putin de utilizar armamento nuclear na Guerra contra a Ucrânia [4].
Barbie e o frenesi coletivo de consumo plástico
No que diz respeito à Barbie como um símbolo do Antropoceno, vale destacar que: ainda que o filme busque realizar uma crítica de gênero importante e possa representar uma vitória feminina no mundo do cinema, significa, por outro lado, um verdadeiro sucesso publicitário para a marca Mattel, em outras palavras, o aumento da produção e venda de bonecas de plástico.
Só no Brasil, no mês de julho de 2023, após o lançamento do filme, a venda de bonecas Barbie triplicou [5]. Como o próprio diretor-presidente da Mattel afirmou: "O filme da Barbie é uma vitrine para a ressonância cultural de nossa propriedade intelectual [...]” [6]. As bonecas Barbie são feitas principalmente de plástico. O corpo da boneca é feito de vinil ou PVC (cloreto de polivinila), e a maioria das partes da boneca, incluindo cabeça, braços e pernas, são feitas de plástico macio e flexível para permitir articulação e movimento.
O crescimento da produção de brinquedos mundialmente representa, consequentemente, o descarte desses materiais no meio ambiente. A indústria de brinquedos é uma grande responsável pela fabricação de materiais plásticos não recicláveis e que acabam sendo descartados de maneira indevida. Nesse sentido, destacamos na Newsletter #9 matéria do @earthrise.studio [7] que questiona se o frenesi coletivo com o filme Barbie vai incentivar a poluição plástica no planeta.
Como bem destaca Nancy Fraser [8], em que pese as pautas de reconhecimento serem essenciais para a construção de uma sociedade mais justa, elas não podem ser analisadas de maneira isolada, especialmente num período da história humana marcado pela emergência no enfrentamento das questões ecológicas e climáticas. A intersecção entre questões de raça, gênero e classe é essencial para abordar esses problemas.
O caso do filme Barbie evidencia que devemos ter muito cuidado para saber quando as pautas por reconhecimento podem estar sendo apropriadas para incentivar, ao final, mais consumo e mais lucro para grandes empresas e, consequentemente, mais contaminação e riscos socioambientais às pessoas vulneráveis que, na maioria dos casos, são mulheres (especialmente negras, de comunidades quilombolas ou indígenas), como apontam os movimentos ecofeministas, as lutas por justiça ambiental e até mesmo relatórios da ONU [9].
Enquanto as vendas da boneca Barbie aumentam, as populações - e nelas, especialmente as mulheres - e grupos marginalizados e sub-representados permanecem como as maiores vítimas dos efeitos socioambientais e climáticos impulsionados pelo consumo exacerbado de produtos artificiais que marca o Antropoceno.
Conclusão
Em suma, Oppenheimer e Barbie representam bem os problemas socioambientais que vivemos hoje porque podem ser vistos como dois "símbolos" do impacto humano sobre o planeta: resíduos plásticos e nucleares.
Em que pese os armamentos termonucleares hoje existentes serem fruto do trabalho de diversos cientistas ao longo das últimas sete décadas, Oppenheimer será sempre "o pai da bomba atômica" e os resíduos nucleares no biosfera que marcam o início Antropoceno tiveram como "tiro de largada" a sua invenção. Barbie, por sua vez, ainda que feminista e comprometida com a diversidade, retrata também uma sociedade completamente dependente do consumo de materiais artificiais e profundamente poluentes como o plástico, outra marca do Antropoceno.
Referências:
[1] A exemplo dos textos publicados pela IDU Unisinos: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/630845-barbie-nao-consegue-lidar-com-a-verdade-artigo-de-slavoj-zizek; [2] https://brasil.un.org/pt-br/202681-artigo-tratado-de-proibi%C3%A7%C3%A3o-total-de-ensaios-nucleares-%C3%A9-uma-hist%C3%B3ria-de-sucesso-pronta-para
[3] Ibidem.
[7] https://www.instagram.com/p/Cu_ZDqvo3-l/
[9] Confira o relatório da ONU em: https://reliefweb.int/report/world/report-special-rapporteur-violence-against-women-and-girls-its-causes-and-consequences-reem-alsalem-a77136-enarruzh
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