O texto de hoje corresponde a terceira parte da série "A dialética do Agro" e focaliza a ironia de como o setor que deveria garantir a alimentação da população pode, de fato, estar radicalizando a fome e comprometendo a segurança alimentar.
O Brasil na última década, potencializado ainda mais pelo governo Bolsonaro, intensificou seu caráter subserviente aos interesses do grande capital financeiro e do imperialismo. Exercendo funções secundárias na economia global, mantendo-se na parte superior do ranking de consumo de agrotóxicos no planeta e de monoculturas transgênicas para exportação. Soma-se a isto o processo de desindustrialização caminhando a passos largos, com suas bases de transformação industrial cada vez mais sucateadas.
O implacável caráter expansionista do Capital expressa-se em nosso modelo agrícola hegemônico (Agrobiz): a ampliação do latifúndio potencializada pela relação escassa entre a elevação da produtividade e a demanda de insumos que as sementes modificadas podem oferecer. Não há outro caminho para manter a rentabilidade nesse modelo. Alterações das legislações ambiental e fundiária permitem expansão do Agronegócio para áreas de preservação, expropriação de territórios atualmente ocupados por populações tradicionais, indígenas ou ainda assentamentos de reforma agrária. Com efeito, são motores para garantir a reprodução do modelo agroeconômico, que por sua vez torna-se agente causador de diversos crimes ambientais e segue promovendo genocídios e etnocídios da população cada vez mais vulnerável ante o desejo de maiores lucros.
O modelo do Agrobiz aparece como herói do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Entretanto, em sua essência, é o vilão responsável pela insegurança alimentar, que em 2022 já encontrava-se presente em mais de 110 milhões de brasileiros, e pelo retorno do Brasil ao mapa da fome, que no mesmo ano já ultrapassava 33 milhões de pessoas nessa situação. O Agronegócio é o grande intensificador das desigualdades que se expressam na crise social na qual o país se encontra. Somam-se a isto as alterações dos ecossistemas e perda de biodiversidade, causadas pelos agrotóxicos (venenos) - impactos ambientais sem possibilidade de recuperação.
4.1 Agro e fome: relação indissociável por trás da fantasia de uma falsa promessa
O Agronegócio, muitas vezes aclamado como o herói econômico do Brasil, tem um lado sombrio frequentemente obscurecido por estatísticas de crescimento econômico. Enquanto as cifras apontam recordes de exportação e aumentos substanciais no PIB, a realidade que emerge nas casas de milhões de brasileiros é lúgubre. O mesmo sistema que colhe lucros astronômicos na exportação de commodities é paradoxalmente incapaz de garantir o básico para a população: alimentação de qualidade. As riquezas geradas no campo não parecem representar riquezas na mesa dos cidadãos.
Destarte, analisemos de forma sucinta a relação entre Agronegócio e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). Investigaremos como a existência do Agrobiz inviabiliza o combate à fome, agindo como agente direto de reprodução das desigualdades sociais. Dessa forma, apresentando-se como o grande causador de insegurança alimentar grave e doenças como obesidade, ligadas ao baixo valor nutricional dos alimentos de má qualidade que produz. Os produtos resultantes deste sistema muitas vezes recebem o rótulo de “comida”, mas sua qualidade nutricional e seu valor real como alimento são questionáveis.
A constituição e o estabelecimento do Agronegócio forjaram-se, principalmente, sob a ideia de que o crescimento populacional seria incompatível com a produção camponesa tradicional de alimentos. Para atender a demanda dos novos bilhões de habitantes do planeta acompanhando seu crescimento, seria necessária a modernização dos métodos de produção agrícola. Com efeito, o mundo seria conduzido para a erradicação da fome e da insegurança alimentar[1].
Em tópicos anteriores, trouxemos elementos que demonstram a verdadeira razão da então chamada modernização agrícola, através da mecanização da agricultura e da utilização de sementes transgênicas monocultivadas à base de fertilizantes e agrotóxicos. O termo “modernização agrícola” foi propagado com a promessa de otimização na produção de alimentos, sugerindo que a tecnologia e a inovação seriam as chaves para erradicar a fome. No entanto, ao analisarmos mais a fundo, percebemos que essa “modernização” muitas vezes serve mais aos interesses econômicos de grandes conglomerados do que à causa real de alimentar de forma justa e nutritiva a população crescente.
No início de junho de 2022, uma pesquisa realizada pela Rede PENSSAN[2] revelou que mais de 33 milhões de pessoas não tinham o que comer, e quase 60% da população brasileira apresentava algum grau de insegurança alimentar. Por outro lado, as exportações brasileiras do Agrobiz bateram seguidos recordes de faturamento, crescimentos de até 30%, com montantes na casa dos US$ 80 bilhões (R$ 390 bilhões, em conversão direta no mês de setembro/2023).
Embora o Agronegócio possa alegar avanços tecnológicos, é fundamental investigar o ethos que guia essas inovações. Aqui entra a discussão sobre a ética ambientalista e a biotecnologia. Antes de seguirmos, vamos trazer algumas questões referentes à ética ambientalista elaboradas por Altieri[3] para conduzir nossas reflexões acerca do que se conhece como biotecnologia[4]:
Podemos alterar a estrutura genética de todos os seres vivos em nome da utilidade e do ganho econômico? Existe um respeito pela vida ou todas as formas de vida, incluindo o homem, devem ser vistas como simples bens no novo mercado da biotecnologia? A manipulação genética de todos os seres vivos é uma herança acessível para todos ou é propriedade privada de algumas corporações? Quem deu a algumas empresas o direito e o monopólio sobre diversos grupos de organismos? Os biotecnologistas acreditam ser os mestres da natureza?. É essa uma ilusão surgida a partir da arrogância científica e da economia convencional, que ignora a complexidade dos processos ecológicos? É possível minimizar as considerações éticas, reduzir os riscos ambientais e ao mesmo tempo manter os benefícios? [...] Quem se beneficia da biotecnologia? Quem perde com ela? Quais são as conseqüências [sic.] ambientais e de saúde pública? Quais tem sido as alternativas propostas? A biotecnologia é uma resposta a quais necessidades? De que forma a biotecnologia afeta o que está sendo produzido, como é produzido, por quem e para quê? Quais são os objetivos sociais e os critérios éticos que orientam as pesquisas? Que objetivos sociais e agronômicos atinge a Biotecnologia?[5]
Como se nota, o excerto de Altieri levanta questionamentos cruciais sobre a ética, apropriação e impactos da biotecnologia na sociedade contemporânea. Suas indagações perpassam desde as implicações morais do domínio genético até as consequências práticas e sociais dessa ciência emergente. Através deste trecho, fica evidente a necessidade de um diálogo interdisciplinar que aborde não apenas os avanços técnico-científicos, mas também as repercussões filosóficas, econômicas e sociais da biotecnologia. Ao questionar a quem pertence o direito e o controle sobre os organismos e como os benefícios e malefícios dessa tecnologia são distribuídos, Altieri nos convida a refletir sobre a responsabilidade coletiva na definição dos rumos da biotecnologia.
Ao considerar o papel do Agronegócio na fome brasileira, devemos também examinar o contexto ético e tecnológico que sustenta esse sistema. Quais são os valores que guiam nossa produção alimentar? E mais importante, eles servem ao bem-estar de nossa população ou a outros interesses?
4.2 Modernização da agricultura para que e para quem?
De fato, a modernização agrícola tem sido um tema recorrente nos debates sobre desenvolvimento rural no Brasil. Entretanto, por trás dos avanços tecnológicos e das promessas de uma agricultura mais eficiente, surgem perguntas cruciais: Quem realmente se beneficia dessas mudanças? E a que custo? Neste subtópico, exploraremos estas questões, examinando as motivações por trás da modernização e suas repercussões sociais e econômicas no campo.
Dentre diversos autores, podemos encontrar uma miríade de conceitos de modernização. Como fio condutor, adotaremos duas de suas concepções. Segundo Graziano Neto, a modernização da agricultura é “o processo de transformação capitalista da agricultura, que ocorre vinculado às transformações gerais da economia brasileira recente”[6].
Para Brum seus principais motivos são a
elevação da produtividade do trabalho visando o aumento do lucro; redução dos custos unitários de produção para vencer a concorrência; necessidade de superar os conflitos entre capital e o latifúndio, visto que a modernização levantou a questão da renda da terra; possibilitar a implantação do complexo agroindustrial no país[7].
Esse processo de modernização integrou as cadeias de processamento e distribuição de alimentos através de créditos públicos que viabilizaram a compra de maquinário e insumos agrícolas. Dessa maneira, a agricultura familiar tornou-se subordinada à agroindústria por conta dessa dependência. Logo “os poucos agricultores empobrecidos que viessem a ter acesso à biotecnologia se tornariam perigosamente dependentes da aquisição anual de sementes transgênicas”[8].
Ora, cabe aqui o registro que a venda de sementes transgênicas está diretamente ligada à venda de agrotóxicos, ambos fabricados pela mesma cadeia de grandes empresas do Agronegócio (Bayer, Syngenta, Basf, Monsanto, e outras). Após a concentração de benefícios nos agricultores mais ricos acelerar a distância entre esses e os camponeses mais pobres, aumentando a desigualdade rural, as formas de acesso à terra e aos recursos para os desfavorecidos foram drasticamente prejudicadas[9].
A geração de renda foi dificultada, obrigando os camponeses tradicionais a venderem suas terras por preços muito abaixo do seu valor real, e submeter-se ao trabalho assalariado, seja no campo, ou quando praticamente expulsos, migrando para cidade. Nesse sentido, com a expropriação forçada, parte dos agricultores tradicionais passaram a trabalhar para os agricultores mais ricos, ideologicamente influenciados por rendas ilusórias e alta produtividade. Os demais migravam para as cidades, convertendo-se em cidadãos urbanos pobres, dada falta de oportunidade no campo.
Importa reforçar que, para compreendermos como a modernização agrícola torna-se um obstáculo ao combate a fome, é necessário entender como as relações de troca desigual estabeleceram-se no campo. É através dessa modernização que as relações agrárias, que eram anteriormente baseadas em tradições e direitos históricos, agora estão amplamente determinadas por transações capitalistas. Tal transformação resultou na mercantilização da agricultura, onde as relações são dominadas pela busca de lucro e não por práticas e direitos estabelecidos historicamente[10].
Nessa perspectiva, a luta de classes no campo é materializada através da relação entre o agricultor familiar e os empresários do Agrobiz. Ela é mediada pelo sistema de produção agroecológico, que disputa com o Agronegócio justamente o camponês, a única fonte geradora de valor, através do seu trabalho[11].
Para aprofundar nossa compreensão sobre as consequências da modernização, é crucial explorar a natureza intrínseca da produção e do consumo no capitalismo. Façamos um rápido exercício, necessário para compreendermos melhor as exposições desse texto. Como a troca de mercadorias é a base estrutural e estruturante do modo de produção capitalista, resgatemos mais algumas reflexões acerca do tema: o ato de produção é um ato de consumo. Quando nos alimentamos, consumimos o alimento, e ao mesmo tempo, produzimos nosso corpo. A produção é imediatamente consumo, e o consumo é imediatamente produção. Portanto, sem produção não existe consumo e sem consumo não existe produção. Consumo e produção assumem um duplo caráter. Produção, distribuição, troca e consumo são dialeticamente partes constitutivas de uma totalidade[12].
Diante disso, torna-se mais perceptível como as relações de troca no campo são dialeticamente interligadas. Qualquer alternativa que não modifique essa estrutura relacional será incapaz de apresentar-se como meio consistente de substituição do modelo estabelecido desde a modernização agrícola, o Agronegócio. A superação dessa relação só pode ser viabilizada mediante a superação da propriedade privada e do trabalho assalariado, pilares básicos do sistema capitalista.
No contexto agrário, é a propriedade privada e o trabalho assalariado que perpetuam as desigualdades, onde a terra e os recursos são concentrados nas mãos de poucos (nesse caso, o grande empresário do Agrobiz, que gradativamente acumula mais poder de decisão no que e como produzir alimentos), enquanto muitos camponeses são reduzidos a trabalhadores assalariados sem autonomia. Para que haja uma verdadeira mudança nas relações de poder no campo, e consequentemente, uma abordagem mais equitativa e sustentável da agricultura, seria necessário revisar e reformular essas estruturas fundamentais.
Um contraste importante na discussão sobre a modernização agrícola é a diferença entre as abordagens da agroecologia e da engenharia genética. Por um lado, a Agroecologia opera de forma antagônica ao sistema capitalista uma vez que prioriza equilibrar a relação metabólica entre os seres humanos e a natureza, oferecendo bases científicas para o desenvolvimento de sistemas produtivos sustentáveis sem a necessidade de uso de produtos agroquímicos. Por outro lado, a engenharia genética consiste em uma ciência reducionista que sobrevive à base de mitos solucionadores de problemas ambientais que não se sustentam[13].
Outro elemento a ser considerado, não menos importante, é a apropriação e o apagamento dos conhecimentos tradicionais, responsáveis pela conservação e regeneração das florestas há milênios. Laboratórios de grandes empresas ligadas ao Agrobiz, em relações cada vez mais estreitas com o Estado, confrontam diretamente os saberes tradicionais com suas patentes[14], servindo como estratégia de concentração dos meios de produção agrícolas e manutenção da dependência camponesa, conforme vimos mais acima.
A modernização agrícola, ao invés de ser instrumento de igualdade e progresso, muitas vezes reforçou desigualdades, promoveu a concentração de poder e marginalizou pequenos agricultores. Enquanto as grandes corporações se beneficiam, os custos sociais e econômicos são frequentemente suportados pelos camponeses e pela integridade ecológica do país.
4.3 A promessa de erradicação da fome que radicaliza sua existência
No decorrer deste artigo, exploramos a complexa interação entre os padrões de produção e consumo sob o paradigma do capitalismo. Vimos como os mecanismos inerentes ao sistema perpetuam desigualdades e aprofundam as disparidades, com o Agronegócio desempenhando um papel fundamental nesse processo. Compreendemos também, que a dialética torna a produção e distribuição de alimentos indissociáveis no modo de produção capitalista.
Nesse sentido, a produção no campo é engendrada pelo padrão de consumo, que por sua vez é determinado pela propaganda de forte cunho ideológico impetrada pelo Agronegócio. A partir dessa base, neste tópico, aprofundaremos nosso foco no Agronegócio e sua promessa de erradicar a fome.
Porto Gonçalves demonstra em detalhes a forma que a produção e distribuição de alimentos transgênicos (trigo, arroz, milho e soja) no campo são determinantes para os hábitos de consumo alimentar da cidade. Especialmente com a drástica redução de espécies ofertadas e a constituição de padrões de produção - que aceleram o processo de modernização agrícola -, escorados na justificativa da elevação da produtividade, e consequentemente, o suprimento das progressivas demandas alimentares da população crescente[15].
Enquanto Porto Gonçalves oferece uma análise abrangente do assunto, vale destacar que a redução da diversidade de espécies alimentares não apenas compromete a resiliência ecológica, mas também limita a variedade nutricional disponível para os consumidores. A variedade na produção de alimentos não é apenas uma questão de escolha, tem implicações diretas para a saúde humana e a sustentabilidade ambiental.
Conforme já tratado anteriormente, uma consequência insidiosa da modernização agrícola é a crescente dependência dos agricultores em relação às corporações agrícolas dominantes. Em vez de serem capazes de replantar sementes de suas colheitas anteriores, muitos agricultores agora se encontram presos em um ciclo de comprar sementes patenteadas a cada estação. Isso não apenas aumenta os custos operacionais para os agricultores, mas também consolida o controle corporativo sobre os insumos agrícolas, restringindo a autonomia e resiliência daqueles.
Não obstante, Andriolli (2012) demonstra que tal produtividade jamais fora comprovada. Em sua pesquisa, considerando a soja RR[16], constatou-se que os métodos tradicionais (agroetnoecológicos) têm produtividade em média 9% superior aos convencionais (transgênicos). Não bastassem as falsas promessas venenosas, a Monsanto sugeriu como solução para esse descompasso eliminar a produção de soja tradicional no mundo[17].
Altieri (2012a) amplia essa discussão, observando que os camponeses são peças-chave para a segurança alimentar regional, uma vez que fornecem a maior parte dos alimentos consumidos nas áreas rurais e periurbanas dos países em desenvolvimento. Segundo ele, pequenas explorações agrícolas, em particular, têm mostrado ser mais produtivas e eficientes na conservação dos recursos.
Como se nota, esses camponeses são capazes de produzir mais alimentos por hectare utilizando práticas agrícolas mais sustentáveis e com menos insumos externos. Além disso, ao adotar técnicas de agroecologia, essas explorações demonstram maior resiliência às mudanças climáticas. Essa abordagem agroecológica torna-se crucial quando consideramos que as mudanças climáticas ameaçam a segurança alimentar de inúmeras comunidades. Especialmente através da agroecologia, a promoção da produtividade nos pequenos sistemas agrícolas, portanto, é fundamental para a sustentabilidade e a resiliência dos sistemas alimentares[18].
Nesse momento, já investigamos a modernização agrícola como elemento central da agudização da luta de classes no campo, através das relações de troca desigual e da intensificação da divisão do trabalho, que por sua vez, aliena[19] cada vez mais o trabalhador. As limitações naturais dessa relação, aliadas ao esgotamento dos recursos (degradação/destruição ambiental, mudanças climáticas e perda da biodiversidade), elevam a tensão entre as relações sociais e o modo de produção, uma vez que esses recursos (meios de produção) tornam-se mais restritos e mais caros, limitando cada vez mais o acesso a esse processo de exploração.
A degradação ambiental resultante das práticas agrícolas insustentáveis é um ponto que não pode ser enfatizado o suficiente. A utilização extensiva de pesticidas e fertilizantes sintéticos, além do esgotamento do solo e da contaminação da água, tem implicações de longo alcance não apenas para a biodiversidade local, mas também para a capacidade contínua de produzir alimentos de forma sustentável.
O recrudescimento da insegurança alimentar, portanto, é inevitável. Como percebemos detalhadamente mais acima, sob diversos aspectos, não há meios de se obter qualquer distribuição equitativa dentro das relações de produção capitalistas. Sua própria estrutura inviabilizaria o processo produtivo. A insegurança alimentar é um funesto e extremamente grave sintoma do sistema vigente.
Para além das questões estruturais, ainda dispomos de diversas informações que corroboram com essa reflexão, advindas de instituições relevantes acerca da insegurança alimentar. Segundo a FAO[20]:
uma das principais lições extraídas da análise das experiências de outros países é a de que a fome, a insegurança alimentar e a má alimentação são problemas complexos que não podem ser resolvidos por somente uma das partes ou setor interessado. Abordar as causas imediatas e subjacentes da fome exigirá uma variedade de medidas em toda uma série de setores como a produção e a produtividade agrícola, o desenvolvimento rural, a silvicultura, a pesca, a proteção social, o comércio e os mercados. Embora muitas dessas medidas sejam tomadas no âmbito nacional e local, há também aspectos de natureza regional e mundial que exigem a adoção de medidas em uma escala maior. Políticas e programas são formulados e implementados em complexos ambientes sociais, políticos, econômicos e agroecológicos[21].
Com efeito, já temos elementos suficientes para desmontar a fantasia da promessa que justificou a modernização agrícola e a consolidação do Agronegócio. Entretanto, avancemos um pouco mais na demonstração desse setor enquanto causa da agudização da insegurança alimentar e da fome global.
Retomando a biotecnologia, que deu origem à reflexão proposta no início do tópico, o Prof. Dr. Miguel A. Altieri desmontou diversos mitos que ratificam nossa investigação acerca da Biotecnologia[22]. Para além da desmistificação de todas essas falácias propagadas no final do século XX, Altieri ainda assevera que
a tendência para uma visão reducionista na natureza e na agricultura, acionada pela biotecnologia contemporânea, deve ser revertida procurando uma visão mais holística da agricultura, para garantir que as alternativas agroecológicas não sejam deixadas de lado e que não somente alguns aspectos ecológicos da biotecnologia sejam pesquisados e desenvolvidos[23].
Ocorre que, inexoravelmente, as limitações ecológicas são determinantes negativa ou positivamente na produção e provimento da alimentação para a população mundial. Contudo, investigar a dialética do Agronegócio com a natureza é fundamental para uma compreensão materialista das relações de produção capitalistas e da dinâmica campo-cidade.
Em resumo, a promessa do Agronegócio de resolver os desafios da fome e da insegurança alimentar no mundo está longe de ser realizada. Na direção contrária, os mecanismos capitalistas subjacentes agravam as desigualdades e intensificam as tensões entre a produção e o consumo. A biotecnologia, embora tenha potencial, não é a panaceia que muitas vezes é promovida como tal. É essencial uma abordagem mais holística e equilibrada, que considere tanto as demandas ecológicas quanto as necessidades humanas.
Após analisar a ineficácia da promessa do Agronegócio e sua influência direta na insegurança alimentar, é imperativo compreender a profundidade das implicações desta insegurança em nossas vidas e na sociedade contemporânea. Nesta conjuntura, emerge o conceito de “alienação soberana” como uma peça crucial para esclarecer a complexidade do cenário atual. Ao invés de simplesmente tratar a fome como uma questão de falta de alimentos, é vital entender as dinâmicas estruturais e políticas que determinam quem tem acesso a esses alimentos e de que forma. No próximo tópico aprofundaremos nosso entendimento sobre esta interseção crítica e seu papel na determinação da verdadeira natureza da insegurança alimentar em um mundo dominado pelo Agrobiz.
4.4 Segurança alimentar e nutricional vs. alienação soberana
Na interseção entre segurança alimentar e nutricional e o crescente domínio do Agronegócio, testemunhamos uma profunda transformação na relação das pessoas com os alimentos. Este tópico explora como essa mudança evoluiu e as implicações que traz para nossa saúde e soberania alimentar.
Conforme vimos nas seções anteriores, a ideologia do Agrobiz é constituída através de fortes e manipuladoras campanhas de propaganda. A ideia do conceito de comida foi totalmente ressignificada. Tornaram-se comuns distorções como “Brasil é o celeiro do mundo. Alimentamos nossos mais de 200 milhões de habitantes e exportamos para alimentar mais de 1 bilhão de pessoas no mundo”[24].
Em uma sociedade dominada por alimentos processados, ultraprocessados e transgênicos, muitos dos quais contêm grandes quantidades de veneno, o conceito de comida no imaginário social vem nos transformando em mega consumidores de produtos com baixa qualidade nutricional e alto poder destrutivo para nossa saúde. Na prática, remodelam todas as relações das pessoas com os alimentos, que foram construídas no decorrer da história e da relações sociais entre seres humanos.
A construção dessa alienação[25] perpassa pelo tempo cada vez mais escasso, desde intervalos em horário de trabalho para refeições em disputa com as atividades pessoais cotidianas necessárias, até os elevados tempos gastos em percursos residência-trabalho[26]. Os domicílios não ficam de fora. Refeições familiares foram inundadas pela sociabilidade digital individualizada, alimentação de preparo rápido e pouco trabalho posterior de arrumação e lavagem de utensílios domésticos. Tudo isto em detrimento das relações de compartilhamento das vidas de cada pessoa em momentos de relações familiares, gradativamente mais escassos e fragmentados[27].
Grandes supermercados substituíram os tradicionais armazéns, açougues, feiras e mercados municipais que eram, antes, acessíveis à camada mais pobre da população. Os poucos que se mantiveram, foram transformados pelo autosserviço[28], com ofertas mais sofisticadas e preços mais elevados. Nesse sentido, o acesso foi reduzido ainda mais às classes de maior orçamento familiar. Por um lado, estes comem melhor e pagam menos; por outro lado, os mais pobres comem pior e pagam mais caro[29].
O imaginário social contemporâneo da produção de alimentos também foi completamente transformado. A visão que habitava os que cresceram entre as décadas de 1960 a 1990, de uma fazenda repleta de grande diversidade de animais e vegetais, de frutas e cores que dezenas de arco-íris não dariam conta em descrevê-las, foi substituída pela soja e pelo milho em quase todas as opções de alimentos que nos são ofertados. Estendido a algumas poucas variedades de legumes e frutas, que inclusive descolaram-se das épocas onde determinadas espécies estariam disponíveis.
Onde estão as frutas da estação? As mangas e jabuticabas da primavera? Ou as deliciosas frutas do outono, como abacate, pêssego e romã? O inverno se tornava mais alegre com o aparecimento dos morangos vermelhos e suculentos, uvas e caju. O calor do verão nos trazia os suculentos melões e melancias, além de acerola e ameixa. Todos com altíssimo valor nutricional. Eram os gostos da estação, onde a ansiedade da espera pela época certa dava lugar ao prazer das suas degustações.
Hoje em dia, a ideia de produção alimentar está encarcerada no pequeno universo finito da soja, do milho, da cana-de-açúcar e do eucalipto. Frutas são encontradas em qualquer estação, e suas aparências não diferem em nada daquelas frutas artificiais que ornamentavam as casas de nossos avós. As monoculturas, a pecuária extensiva bovina, e a produção de suínos e de aves em confinamento, repousam em nossas mentes. Como resultado, itens alimentícios de baixíssimo valor nutricional e ricos em produtos químicos nocivos à nossa saúde[30].Vivemos na era da não comida.
A simplificação da cadeia alimentar reduziu drasticamente o número de espécies em nossas dietas, diante da oferta abundante de produtos que atravessaram as barreiras da distância e do clima, e alimentam a sensação de fartura, limitada às patentes do Agronegócio. Especialmente cereais oriundos das monoculturas que dissolveram as fazendas do passado, dando lugar a grandes campos monocromáticos produtores de solos inférteis.
Segundo Michael Pollan[31], a era do nutricionismo industrial. O resultado, portanto, é a insegurança alimentar generalizada. Por um lado, conduz à fome, por outro lado, conduz a deficiências nutricionais causadoras de problemas graves de saúde pública, como a obesidade. E o Agro? Vai muito bem, obrigado.
No ano de 1993, foi criada a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), com o principal objetivo de ser uma organização intersetorial, para elaborar e promover um projeto político e econômico para o Agrobiz. A instituição, na época, contou com um conselho administrativo formado por representantes de empresas como a Monsanto, Nestlé, Sadia, Sendas, dentre outras gigantes do setor[32].
Vejamos uma passagem bastante interessante da ABAG, acerca do que esta defendia ser o desafio e a principal responsabilidade social da inestimável entidade embrionária:
A história dos países desenvolvidos revela que foi a adoção de uma política de segurança alimentar que lhes assegurou crescimento econômico com demanda sustentada, dando-lhes estabilidade e melhor distribuição dos frutos do progresso material e melhor qualidade de vida. Não se diga que eles o fizeram porque são ricos. A verdade é o contrário. Eles tornaram-se ricos porque assim o fizeram. [...] Não se implementa uma política de segurança alimentar sem alimentos[33].
No entanto, à medida que estratégias empresariais do setor buscam legitimar agrocommodities, escoradas em justificativas voltadas para alimentação, como a falsa promessa de promover Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), não restam dúvidas que estas colocam-se em relação direta com o aumento da obesidade e da insegurança alimentar grave.
O contraste entre a retórica do Agrobiz e a realidade vivida por muitos evidencia a necessidade de uma reavaliação crítica de nossos sistemas alimentares. A promessa não cumprida de segurança alimentar, juntamente com as crescentes preocupações de saúde associadas à dieta moderna, exige uma reflexão mais profunda sobre o papel e as práticas do Agronegócio em nossa sociedade.
4.5 Agrofome: um ciclo destrutivo e interligado
Analisamos, ao longo deste tópico, as características intrínsecas do Agronegócio. Desde sua origem até sua atual configuração, moldada pela modernização agrícola e pelo desenvolvimento das relações de produção e da dinâmica campo-cidade, ambas fortemente influenciadas por este setor. Constatamos como o Agronegócio se opõe diretamente ao conceito de Segurança Alimentar e Nutricional.
O poder destrutivo do Agronegócio manifesta-se em múltiplas formas: guerra, morte, fome, danos ambientais irreparáveis, expropriação e expulsão de camponeses, exploração trabalhista, e concentração de renda. A paisagem resultante é desoladora. A terra arrasada por uma avalanche que engole e destrói tradições e culturas dos povos originários e locais, apaga suas histórias e memórias, e reescreve uma modernidade sombria por meio da imposição de práticas produtivas de não comida. Nesse sentido, o Agrobiz condena a maior parte da população a submoradias, subalimentação, doenças mórbidas e desnutrição.
A resposta a esse cenário, portanto, é a proposta de Soberania Alimentar. Um conceito que expande e redefine a Segurança Alimentar e Nutricional, introduzido pela Via Campesina[34]. Tal conceito foca na liberdade dos povos de escolherem como querem alimentar-se, produzir sua comida e entender a origem de seus alimentos. Trata-se de uma transformação profunda, buscando realmente combater a fome, além das restrições do sistema capitalista.
Para realizar essa mudança, é essencial unir os movimentos sociais, repensar a relação campo-cidade e intensificar as lutas populares, incluindo a busca por uma Reforma Agrária efetiva. O objetivo é criar uma sociedade em que o poder seja verdadeiramente do povo, defendendo os interesses dos trabalhadores rurais e urbanos, e caminhando em direção a uma sociedade mais justa e igualitária.
[1] Cunha, 2011, p.17-18 e p.169-172. [2] Ver em https://pesquisassan.net.br/2o-inquerito-nacional-sobre-inseguranca-alimentar-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil/. [3] Miguel Altieri é um professor e pesquisador chileno de Agroecologia na Universidade da Califórnia, Berkeley, no Departamento de Ciência, Política e Gestão Ambiental, além de agrônomo e entomologista. É autor de diversas obras na área de sociologia ambiental e referência mundial no tema. [4] De acordo com a ONU, “biotecnologia significa qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica” (ONU, Convenção de Biodiversidade 1992, Art. 2). [5] Altieri, 1999, p.2-3. [6] Graziano Neto, 1985 apud Teixeira, 2005, p. 22. [7] Brum, 1988 apud Teixeira, 2005, p. 23. [8] Altieri, 2012b, p.40-58. [9] Cunha, 2011, p. 69. [10] Engels, 2019, p.37-82. [11] Marx; Engels; 2007, p.63. [12] Marx, 2007, p. 246-247 e 256-257. [13] Dalla Riva, 2020, p. 32. [14] Porto Gonçalves, 2004, p.3-4. [15] Ibidem. [16] A soja RR, ou soja Roundup Ready foi desenvolvida pela gigante Monsanto. Possui um evento transgênico que confere tolerância ao herbicida conhecido como RoundUp, à base de glifosato. Este, por sua vez, é um composto químico altamente tóxico, de ação sistêmica para controle de plantas daninhas. Mais de 75% dos monocultivos transgênicos no Brasil são de soja RR, a principal responsável pelo crescimento descontrolado do uso de glifosato nos últimos anos. Um salto de 57,6 mil para 300 mil toneladas no período de 2003 a 2009 (Cunha, 2011, p.69-71). [17] Andrioli, 2012. [18] Altieri, 2012a, p. 24-29. [19] A alienação em Marx é tratada sob quatro aspectos: (i) em relação ao produto do trabalho, que consiste na alienação do trabalhador por não se reconhecer no produto que contém em si a sua essência, que por um lado o torna mais pobre, e por outro lado enriquece o capitalista; (ii) no processo de produção, i.e., a alienação se dá no próprio processo de produção ao qual se submeteu, uma vez que o trabalhador encontra-se alienado em relação ao produto do seu próprio trabalho; (iii) em relação à existência do indivíduo enquanto membro do gênero humano que, na qualidade de ser genérico dotado de inúmeras capacidades e potencialidades, ao se separar de sua essência, individualiza-se, torna-se um indivíduo solitário; (iv) em relação aos outros indivíduos, dada sua individualização e unilateralização da vida, esta perde todo e qualquer significado (Marx, 2015, p.311-314). [20] FAO - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (https://www.fao.org/brasil/pt/). [21] FAO, 2014, p.5. [22] Altieri, 1999, p.2-5. [23] Ibid., p. 6. [24] Ver em: https://www.istoedinheiro.com.br/agronegocio-ajudou-a-segurar-pib-durante-a-pandemia-diz-ministra/. [25] Conforme discutido nas seções anteriores, esta alienação, no sentido marxista, manifesta-se na distância crescente entre os consumidores e a origem dos alimentos que consomem. [26] IPEA, 2013. [27] Gomes Jr; Aly Junior, 2016, p. 309-310. [28] Lojas do varejo baseadas no autoatendimento, sem a necessidade de vendedores intermediando as compras, onde o consumidor escolhe seus produtos em prateleiras e se dirige ao caixa para efetuar o pagamento. [29] Ibid., p. 310-311. [30] Ibid., p. 311-313. [31] Para um maior aprofundamento no tema, Michael Pollan, escritor estadunidense, possui duas obras muito interessantes e completas, traduzidas para o português pela Editora Intrínseca: O dilema do onívoro, de 2006 e Em defesa da comida de 2008. [32] Pompeia, 2021, p.111. [33] ABAG apud Pompeia, 2021, p. 114. [34] Via Campesina é uma entidade internacional que articula movimentos sociais rurais ao redor do mundo. Para mais informações, consulte: https://viacampesina.org/es/ e https://www.instagram.com/via_campesina_brasil/.
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