A (Im)possibilidades de mitigação ao longo da cadeia produtiva agroalimentar
A despeito das questões que circundam a complexidade da insegurança alimentar no Brasil por razões da colonialidade, da globalização e da sistemática de produção das commodities, com a pandemia, um tema bastante específico vem retornando às discussões e preocupações da sociedade: a fome de acesso aos alimentos, ou seja, a segurança alimentar em seu aspecto mais puro, que é o quantitativo.
Há 870 milhões de pessoas passando fome (FAO, 2013), embora o direito à alimentação adequada esteja previsto enquanto um direito humano fundamental, somado ao fato de que há produção suficiente de alimentos, comprometendo, portanto, direitos como o da segurança alimentar e impedindo a promoção da sustentabilidade socioambiental.
Referido panorama ocorre, principalmente, nos países do Sul Social, como o Brasil, onde, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (2020), o número de pessoas com insegurança alimentar moderada – não ter alimentos suficientes – corresponde a 20,5% da população, ao passo que são 19,1 milhões de brasileiros vivendo em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, têm fome por não terem acesso a um alimento sequer.
Desde o início da pandemia, a gravidade desse panorama tem sido ainda maior, crescendo o número de famintos no Brasil de 9% para 13%, o que corresponde, aproximadamente, a 20,7 milhões de pessoas que não conseguem comprar comida, de acordo com a Figura 1.
Figura 1 – A fome dos brasileiros na pandemia
Cabe ressaltar que, para além de toda essa situação dramática na qual o país tem vivenciado, há um fator de agravamento: o desperdício de alimentos, que ocorre desde a produção até o consumidor, conforme se demonstra na Figura 2.
Figura 2 – O desperdício de alimentos na cadeia produtiva agroalimentar
O motivo principal do desperdício dos alimentos se inicia no manuseio, armazenamento e acondicionamento, oriunda da ineficiência nas cadeias de abastecimento, cuja infraestrutura e logística são inadequadas, bem como há falta de tecnologia, habilidade e conhecimento, ainda contando com insuficiência da capacidade de gestão, o que corresponde a 54% de desperdício da produção mundial (FAO, 2013).
Os outros 46% são os alimentos desperdiçados na fase seguinte da cadeia produtiva, a de processamento, distribuição e consumo (FAO, 2013). Agregando-se à questão do desperdício de alimentos, ressaltam-se os impactos socioambientais, uma vez que as demandas da cadeia produtiva fazem uso de água, solo e biodiversidade, bem como refletem em despesas econômicas que chegam a US$ 750 bilhões anuais (FAO, 2013).
Quando o desperdício é analisado especificamente no Brasil, são quatro os números principais: 10% na fase da colheita, 50% no manuseio e no transporte, 30% nas centrais de abastecimento e 10% entre supermercados e consumidores, de acordo com a Figura 3.
Figura 3 – O desperdício de alimentos no Brasil
Fonte: UNEP, 2021
O Brasil está na lista dos dez países que mais desperdiçam alimentos no mundo, gerando descarte de aproximadamente 30% de tudo que é produzido para o consumo. Isso gera um prejuízo para a economia de quase 940 bilhões de dólares por ano (UNEP, 2021). Ademais dos prejuízos econômicos, encontram-se os prejuízos de cunho socioambiental, considerando-se as imbricações entre produção e consumo da biodiversidade, da água, do solo, bem como as emissões de poluentes. Outrossim, o impacto social é outro fator igualmente afetado por esse modos operandi.
No contexto da alimentação, a insegurança alimentar quando se expressa pela fome, afeta a condição que gera a vida em sua dimensão relacionada à nutrição, assim como a dimensão do próprio ser humano e de sua identidade sociocultural (ALBUQUERQUE, 2009) e, por isso, menciona-se que a problemática da fome reflete socioambientalmente na sociedade.
Mas o que é segurança alimentar?
Segurança alimentar e nutricional guarda relação com o direito humano à alimentação adequada, sendo que este último só poderá ser alcançado quando todas as pessoas tiverem acesso físico e econômico em todos os momentos a alimentos adequados, o que significa desde o acesso aos nutrientes, mas também a condições socioeconômicas, culturais, climáticas e ecológicas (CONSEA, 2006). Nesse aspecto, pode-se afirmar que o direito humano à alimentação adequada é um dos microssistemas que compõem o direito à segurança alimentar e nutricional e vice-versa (IZOLANI, 2021).
A expressão segurança alimentar, ou food security, é um conceito em construção (BURLANDY; COSTA, 2007), que teve sua primeira definição oficial na Cúpula Mundial de Alimentação de 1974, momento em que se referia à “disponibilidade em todos os momentos de suprimentos mundiais adequados de alimentos básicos para sustentar uma expansão constante do consumo de alimentos e compensar as flutuações na produção e nos preços” (FAO, 2003).
Trazendo a definição no âmbito do Brasil, a Lei 11.346/2006 vem a definir, oficialmente, o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) no seu artigo 3, o qual dispõe que:
A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (BRASIL, 2006).
Para garantir o direito à alimentação adequada, foi criado o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), a partir do Decreto 7.272, em 25 de agosto de 2010, que estabelece princípios para definir ações para a SAN, regulamentando a Lei 11.346/2006, bem como instituindo a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN), na qual define sua gestão, mecanismos de financiamento, monitoramento e avaliação.
Por que não há alimentos o suficiente para alimentar a população do Brasil se ele é um país megabiodiverso?
Em que pese seja o Brasil um dos países com maior diversidade vegetal (biodiversidade) e com grande território produtivo, encontra-se como um dos mais populosos do mundo e também um dos que mais desperdiça alimentos, colocando-se em um panorama de insegurança alimentar.
Observa-se que existe uma alta produção mundial de alimentos, porém ao lado dela, encontram-se altos índices de perda e desperdício. A perda ocorre quando o descarte não é intencional, acontecendo no campo, no manuseio, no transporte e no acondicionamento dos alimentos, ao passo que o desperdício é caracterizado quando do descarte intencional, realizado na distribuição, no comércio e pelo consumidor (FAO, 2017).
Segundo o Escritório Regional da FAO para a América Latina e o Caribe, o Brasil está entre os 10 países que mais desperdiçam alimentos no mundo, pois 35% de tudo que é produzido é desperdiçado anualmente (FAO, 2021). Calcula-se que 6% das perdas mundiais de alimentos são oriundas da América Latina, onde está localizado o Brasil, e do Caribe (FAO, 2021).
Some-se a esse fato, que a cada ano, essa região perde e/ou desperdiça cerca de 15% dos alimentos disponíveis, justamente, onde 43,4 milhões de pessoas ainda vivem em situação de fome (REDE PENSSAN, 2021). Ao todo são 1,3 bilhões de toneladas de alimentos perdidos ou desperdiçados no mundo, quantia essa que poderia alimentar cerca de 2 bilhões de pessoas que passam fome (FAO, 2017).
Quais são os alimentos mais desperdiçados no Brasil?
De acordo com o Relatório Final Intercâmbio Brasil-União-Europeia sobre Desperdício de Alimentos, realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária em 2018, pode-se colacionar a Figura 4, a seguir.
Figura 4 – O desperdício de alimentos nas famílias brasileiras
Fonte: Embrapa, 2018. Elaborada pela autora.
Há alternativas ao desperdício de alimentos no Brasil?
Bem, as respostas não são prontas. Todavia, há alternativas voltadas, especificamente, a melhorias no âmbito da cadeia produtiva agroalimentar no Brasil, tais como investimento em tecnologias visando à produtividade, manuseio e transporte; aperfeiçoamento da mão de obra para os devidos cuidados com os produtos; política do não descarte dos alimentos “feios”, que possuem menor valor econômico, porém continuam com o seu valor calórico; educação ambiental para a população, visando à mudança do hábito do desperdício; e políticas públicas.
Por fim, destaca-se que, sem a diminuição do desperdício de alimentos, não há como reverter o ciclo de riscos dela decorrentes, visto que cada vez se produz mais alimentos, se utiliza mais de recursos naturais com impactos graves de cunho ambiental, bem como maximiza a questão da fome em seu aspecto mais paradoxal, o da falta de acesso mesmo existindo produção suficiente no Brasil.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, M. F. M. A segurança alimentar e nutricional e o uso da abordagem de direito humanos no desenho das políticas públicas para combater a fome e a pobreza. Revista de Nutrição, v. 22, n. 6, Campinas, nov./dez. 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1415-52732009000600011. Acesso em: 19 fev. 2021.
BRASIL. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm. Acesso em: 20 fev. 2021.
BURLANDY, L.; COSTA, R. S. Segurança alimentar e nutricional: concepções e desenhos de investigação. In: KAC, G.; SICHIERI, R.; GIGANTE, D. P. (Org.). Epidemiologia nutricional. Rio de Janeiro: Fiocruz – Atheneu, 2007. p. 485-502.
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Lei de Segurança Alimentar e Nutricional: conceitos. Lei 11.346, de 15 de setembro de 2006. Brasília: Consea, 2006. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/consea/biblioteca/publicacoes/cartilhalosan-portugues. Acesso em: 21 mar. 2020.
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Relatório final Intercâmbio Brasil-União-Europeia sobre desperdício de alimentos. 2018. Disponível em: http://www.sectordialogues.org/documentos/noticias/adjuntos/a39a4c_Relatorio_SemDesperdicio_Baixa.pdf. Acesso em: 30 mar. 2021.
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Convenção ABRAS, 2017. Desperdício de alimentos. São Paulo, 12 set. 2017. Disponível em: https://www.abras.com.br/pdf/Apresent_FAO.pdf Acesso em: 20 mar. 2021.
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Food wastage footprint: Impacts on natural resources. Rome, 2013. Disponível em: http://www.fao.org/docrep/018/i3347e/i3347e.pdf. Acesso em: 17 jan. 2021.
Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). Trade Reforms and Food Security. Chapter 2. Food Security: Concepts and Measurement, 2003. Disponível em: http://www.fao.org/docrep/005/y4671e/y4671e06.htm. Acesso em: 30 mar. 2021. Tradução livre.
Food and Agriculture Organization of the United Nations for Latin America and Caribbean (FAO AMÉRICA LATINA E CARIBE). Escritório Regional da FAO para a América Latina e o Caribe. Perdas e desperdícios de alimentos na América Latina e no Caribe. 2021. Disponível em: http://www.fao.org/americas/noticias/ver/pt/c/239394/#:~:text=O%20desperd%C3%ADcio%20%C3%A9%20um%20dos,desperdi%C3%A7a%20cerca%20de%2015%25%20dos. Acesso em: 20 abr. 2021.
IZOLANI, F. I. Direito à segurança alimentar e acesso à informação ambiental: agrointoxicação e impactos do consumo de hortifrutigranjeiros. 2021. 191f. Orientador: Jerônimo Siqueira Tybusch. Dissertação (Mestrado - Centro de Ciências Sociais e Humanas) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Federal de Santa Maria, RS, 2021.
Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (REDE PENSSAN). Insegurança alimentar e Covid-19 no Brasil. 2021. Disponível em: http://olheparaafome.com.br/VIGISAN_Inseguranca_alimentar.pdf. Acesso em: 20 mar. 2021.
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (UNEP). Unep food waste index report 2021. Nairobi: UNEP, 2021. Disponível em: https://www.unep.org/resources/report/unep-food-waste-index-report-2021. Acesso em: 20 mar. 2021.
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