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OS DIREITOS DA NATUREZA SEGUNDO C. STONE E O CASO SIERRA CLUB


Leura Dalla Riva *

Christopher Stone é considerado como o primeiro marco teórico na linha do tempo dos direitos da Natureza com a publicação em 1972, na Southern California Law Review, do artigo “Should trees have standing – toward legal rights for natural objects” por meio do qual o autor argumenta que não haveria barreiras jurídicas ao reconhecimento de direitos para a Natureza[1], uma vez que entes não-humanos (como navios e corporações) já possuiriam esse status por ficções jurídicas: “It is no answer to say that streams and forests cannot have standing because streams and forests cannot speak. Corporations cannot speak either; nor can states, estates, infants, incompetents, muncipalities or universities. Lawyers speak for them, as they customarily do for the ordinary citizen with legal problems”[2].


Stone defende então o reconhecimento de direitos a florestas, oceanos, rios e outros “objetos naturais”, inclusive ao ambiente como um todo[3] e afirma “we should have a system in which, when a friend of a natural object perceives it to be endangered, he can apply to a court for the creation of a guardianship” [4].


O autor também chama a atenção para o fato de que, ao longo da história do direito, cada sucessiva extensão de direitos para uma nova entidade foi sempre considerada impensável pelos detentores de direitos em uma determinada época:


Throughout legal history, each successive extension of rights to some new entity has been, theretofore, a bit unthinkable. We are inclined to suppose the rightlessness of rightless "things" to be a decree of Nature, not a legal convention acting in support of some status quo. It is thus that we defer considering the choices involved in all their moral, social, and economic dimensions. […] each time there is a movement to confer rights onto some new "entity," the proposal is bound to sound odd or frightening or laughable. This is partly because until the rightless thing receives its rights, we cannot see it as anything but a thing for the use of "us"—those who are holding rights at the time[5].


Stone ressalta que: “to say that the natural environment should have rights is not to say anything as silly as that no one should be allowed to cut down a tree”. Além disso, também não significa o reconhecimento de todos os direitos que se pode imaginar, todos os direitos conferidos aos seres humanos, ou ainda, que tudo no meio natural deveria ter direitos[6].


O reconhecimento de direitos da Natureza envolve, para Stone, dois aspectos: (a) os jurídico-operacionais (the legal-operational aspects); e (b) os psíquicos e sócio-psíquicos (the psychic and socio-psychic aspects)[7].


No que diz respeito aos aspectos jurídico-operacionais, Stone questiona: “o que significa ser um possuidor de direitos?”. Para responder, primeiramente, o autor ressalta que uma entidade não pode ser considerada possuidora de direitos amenos e até que uma autoridade pública possa intervir e avaliar quaisquer ações que sejam evidentemente inconsistentes com determinado “direito”[8]. Além disso, três critérios adicionais precisam ser preenchidos: a) que a entidade possa instituir ações judiciais a seu pedido (standing); b) que ao determinar a concessão de tutela legal, o tribunal deve levar em conta os danos causados a entidade; e c) a tutela deve correr para o benefício do requerente[9].


Para exemplificar, Stone apresenta o caso de duas sociedades: Na primeira (S1), um mestre pode (se assim quiser) ajuizar judicialmente uma cobrança de danos contra alguém que tenha lesionado seu escravo. Na segunda (S2), o escravo em si pode ajuizar o procedimento requerendo indenização pelos danos por ele sofridos, a serem medidos pela sua própria dor e sofrimento. Stone salienta que, em que pese nenhuma das sociedades esteja estruturada a ponto de evitar que o escravo sofra, em S2, ao contrário de S1, o escravo possui as três vantagens (legal-operational advantages) acima mencionadas que o fazem, ainda que um escravo, um titular de direitos[10].


Um primeiro aspecto que evidencia essa ausência de reconhecimento de direitos a um determinado “objeto natural” está relacionado ao “standing” que pode ser entendido como a capacidade (ou legitimidade) de instituir ações em nome próprio. Ao aprofundar a questão nos ordenamentos de common law[11], Stone menciona como exemplo um caso de poluição de um córrego. Do ponto de vista da common law, em geral não há como contestar as ações do poluidor a não ser por iniciativa de outro ser humano (no exemplo um ribeirinho) que busque demonstrar algum dano a direito próprio. Isso envolve, contudo, questões mais complexas, pois o ribeirinho afetado pode não se importar com a poluição, pode ser ele mesmo um poluidor sem interesse de acionar as autoridades ou ainda pode ser economicamente dependente de seu vizinho poluidor. Os danos ocasionados ao córrego podem, portanto, permanecerem impunes.


O segundo aspecto que evidencia o não reconhecimento de direitos a “objetos naturais” pela common law, segundo Stone, relaciona-se com a forma como o mérito é decidido nos casos em que um legitimado está disposto a agir judicialmente. Ainda no exemplo do córrego poluído, Stone ressalta que em eventual ação judicial a ser proposta por um ribeirinho afetado, o juízo tende a fazer o balanceamento dos interesses econômicos das comunidades ribeirinhas envolvidas na questão, sem considerar, contudo, os danos ao córrego em si e às demais formas de vida que nele habitam (the “lower life”), pois “so long as the natural environment itself is righdess, these are not matters for judicial cognizance”[12].


O terceiro aspecto que evidencia a inexistência de direitos aos “objetos naturais” tem a ver com quem será beneficiado em caso de um julgamento favorável. No exemplo do córrego poluído, uma completa reparação dos danos incluiria os danos causados aos peixes, aves aquáticas e outros animais e vegetais, dragagem, lavagem de impurezas etc. Stone ressalta, contudo, que sob o modelo vigente mesmo que um reclamante ribeirinho ganhe um processo por danos causados pela poluição da água do córrego, nenhum dinheiro é destinado em benefício do ecossistema afetado[13].


A partir dos três aspectos acima aprofundados, Stone denuncia que, mesmo quando medidas especiais são adotadas para conservação dos “objetos naturais”, o motivo dominante é a conservação para benefício dos seres humanos:


None of the natural objects, whether held in common or situated on private land, has any of the three criteria of a rights-holder. They have no standing in their own right; their unique damages do not count in determining outcome; and they are not the beneficiaries of awards. In such fashion, these objects have traditionally been regarded by the common law, and even by all but the most recent legislation, as objects for man to conquer and master and use. […] Even where special measures have been taken to conserve them, as by seasons on game and limits on timber cutting, the dominant motive has been to conserve them for us […] human beings [14].


Em suma, se reconhecidos direitos aos “objetos naturais”, argumenta Stone, estes poderiam agir em defesa de direito próprio, através de um guardião (representante), os danos a eles seriam apurados e considerados como um fator independente e eles seriam beneficiários de eventuais reparações. Esses três resultados seriam, contudo, apenas “o esqueleto” do que a titularidade de direitos envolveria. Para dar “corpo” ao reconhecimento de direitos ao meio ambiente, o autor argumenta que se mostra essencial estabelecer um rol de direitos a serem protegidos e invocados perante os tribunais.


No que se refere aos aspectos psíquicos e sócio-psíquicos do reconhecimento de direitos aos “objetos naturais”, Stone ressalta que, em que pese existirem alguns desenvolvimentos em andamento já na década de 70, muitos destes avanços rumo à proteção do meio ambiente natural decorrem mais de um crescimento da consciência dos possíveis efeitos de longo prazo sobre a espécie humana do que uma preocupação com o ambiente em si. Admitindo ser uma argumentação de base antropocêntrica que deve ser superada, Stone alerta que o bem-estar e a própria sobrevivência da raça humana dependem da qualidade do meio ambiente[15].


Além disso, Stone ressalta que o enfrentamento dos problemas ambientais não ocorre simplesmente por uma “mudança de consciência”[16] humana a respeito de seu papel enquanto parte integrante da própria Natureza[17], mas esta também é de suma importância para superar a visão de que a Natureza é uma coleção de objetos úteis sem sentido. Para tanto, o ser humano deve abandonar o senso de que é especial e está separado do resto do universo[18].


A obra de Stone lançou luz a uma série de debates que são hoje a base do atual constitucionalismo ambiental ao alinhar o discurso constitucional convencional sobre direitos com preocupações ecológicas não tão convencionais que, até os anos 1970, permaneciam fora dos parâmetros do que foi considerado aceitável ou confortável no mundo jurídico.


Para L. Kotzé, importante autor na área do constitucionalismo ambiental, a tese de Stone pode ser considerada uma primeira indicação crítica sobre o relacionamento entre ética ecológica e direito constitucional que proporcionou as bases acadêmicas para a propagação e incorporação da proteção Ambiental no conjunto de obrigações e funções constitucionais[19].


A publicação do artigo de Stone na “Southern California Law Review” ocorreu a convite do Ministro William O. Douglas da Suprema Corte dos EUA e concomitante ao julgamento do caso Sierra Club v. Morton[20], primeiro marco judicial envolvendo debates sobre direitos da Natureza.


Em 1960, Walt Disney propôs a construção de grande ski-resort em uma área selvagem (Mineral King Valley) nas Montanhas Sierra Nevada na California[21]. O projeto foi aprovado pelo serviço florestal norte-americano em 1969. Como reação à aprovação, a organização Sierra Club[22] entrou com ação judicial (Caso Sierra Club v. Morton) argumentando que o projeto deveria ser interrompido e as licenças canceladas. O governo, contudo, questionou a legitimidade do Sierra Club para interpor a ação, tendo em vista que, historicamente, para iniciar uma ação judicial era necessário que um aspirante a litigante demonstrasse algum dano pessoal, patrimonial ou econômico direto. Inicialmente, o juízo reconheceu a legitimidade do Sierra Club na demanda com base em seu histórico de defesa e proteção das paisagens selvagens e deferiu liminar para bloquear a construção do resort. Em grau de recurso, todavia, a decisão de primeiro grau foi reformada, o a foi construção e a legitimidade do Sierra Club afastada por ausência de comprovação de dano direto à entidade.


O caso se encaminhou então para a Suprema Corte norte-americana em 1971 em razão de recurso do Sierra Club. Foi justamente o Ministro William O. Douglas, que havia convidado Stone para publicação de seu artigo na Southern California Law Review que emitiu voto no sentido de permitir que questões ambientais fossem litigadas perante agências ou tribunais federais em nome do objeto inanimado prestes a ser despojado, defraudado ou invadido por estradas e bulldozers e onde o dano é objeto de indignação pública. O ministro argumentou que “a preocupação pública contemporânea em proteger o equilíbrio ecológico da natureza deve levar à atribuição de legitimidade para que os objetos ambientais sejam processados para sua própria preservação”[23].


O magistrado tentou convencer seus colegas ministros de que o Mineral King Valley e outros elementos naturais deveriam possuir direitos, inclusive standing, o que permitiria aos advogados norte-americanos entrarem com ações em nome de árvores, rios, vales, espécies ameaçadas, dentre outros, agindo sempre na defesa dos interesses do elemento representado, assim como nos casos em que os advogados representam crianças ou pessoas incapazes. William Douglas não conseguiu, contudo, influenciar a maioria dos nove juízes da Suprema Corte, embora seu colega de justiça Harry Blackmun tenha chamado a opinião de Douglas de "eloquente" e insistido para que fosse lida em voz alta no tribunal. Os juízes Blackmun e Brennan concordaram com Douglas de que fazia sentido conceder um estatuto a organizações que pudessem falar com conhecimento de causa em nome do meio ambiente. Ao final do caso, em que pese não ter sido reconhecida legitimidade do Sierra Club para a ação, a opinião pública contrária à construção do resort prevaleceu e o Mineral King Valley permanece protegido[24].


Hoje, o caso Sierra Club é considerado o primeiro caso judicial a realizar o debate acerca do reconhecimento de “direitos” à Natureza[1]. Trata-se de um importante marco que, já na década de setenta, em que pese não ter tido sucesso perante a Suprema Corte norte-americana, chamou atenção para a necessidade de consagrar um outro modelo de relacionamento entre seres humanos e Natureza [25].

Notas


* Doutoranda em Direito Comparado e Processos de Integração na Università degli studi della Campania Luigi Vanvitelli (Caserta, Itália). Mestre em Direito (UFSM, Brasil). Especialista em direito ambiental e sustentabilidade (Unifael, Brasil). Bacharel em Direito (FURB, Brasil). No doutorado, pesquisa sobre direitos da Natureza numa perspectiva comparada entre Brasil e Equador.

[1] Importante salientar que Stone não chega a utilizar o termo “direitos da Natureza”, pois utiliza as expressões “environment”, “natural environment” e “natural objects” em seu texto. [2] STONE, 2018, p. 224 [3] Nesse sentido, Stone argumenta: “Nor is it only matter in human form that has come to be recognized as the possessor of rights. The world of the lawyer is peopled with inanimate right-holders: trusts, corporations, joint ventures, municipalities, Subchapter R partnerships, and nation-states, to mention just a few. Ships, still referred to by courts in the feminine gender, have long had an independent jural life, often with striking consequences. We have become so accustomed to the idea of a corporation having "its" own rights, and being a "person" and "citizen" for so many statutory and constitutional purposes, that we forget how jarring the notion was to early jurists. […] I am quite seriously proposing that we give legal rights to forests, oceans, rivers and other so-called "natural objects" in the environment—indeed, to the natural environment as a whole”. STONE, 2018, p. 215 e 217 [4] STONE, 2018, p. 224 [5] STONE, 2018, p. 216-217 [6] Assim declara Stone: “[…] to say that the environment should have rights is not to say that it should have every right we can imagine, or even the same body of rights as human beings have. Nor is it to say that everything in the environment should have the same rights as every other thing in the environment” STONE, 2018, p. 218. [7] STONE, 2018, p. 218. [8] Nas palavras de Stone: “an entity cannot be said to hold a legal right unless and until some public authoritative body is prepared to give some amount of review to actions that are colorably inconsistent with that "right”. Como exemplo o autor menciona o seguinte caso: “[…] if a student can be expelled from a university and cannot get any public official, even a judge or administrative agent at the lowest level, either (i) to require the university to justify its actions (if only to the extent of filling out an affidavit alleging that the expulsion "was not wholly arbitrary and capricious") or (ii) to compel the university to accord the student some procedural safeguards (a hearing, right to counsel, right to have notice of charges), then the minimum requirements for saying that the student has a legal right to his education do not exist”. STONE, 2018, p. 218-219 [9] No original: ““But for a thing to be a holder of legal rights, something more is needed than that some authoritative body will review the actions and processes of those who threaten it. As I shall use the term, "holder of legal rights," each of three additional criteria must be satisfied. All three, one will observe, go towards making a thing count jurally—to have a legally recognized worth and dignity in its own right, and not merely to serve as a means to benefit "us" (whoever the contemporary group of rights-holders may be). They are, first, that the thing can institute legal actions at its behest; second, that in determining the granting of legal relief, the court must take injury to it into account; and, third, that relief must run to the benefit of it.” STONE, op. cit., p. 219 [10] STONE, 2018, p. 219 [11] Lembrando que o texto de Stone foi escrito nos EUA durante a década de 1970 [12] STONE, 2018, 221 [13] STONE, 2018, 222 [14] STONE, 2018, 223-224 [15] STONE, 2018, p. 250 [16] Nesse sentido, Stone ressalva que: “it is far too pat to suppose that a western "environmental consciousness" is solely or even primarily responsible for our environmental crisis”. Existem, para o autor, uma série de fatores que impedem uma conclusão simples a respeito do que teria causado a crise ambiental hodierna. Para aprofundamentos, cfr. STONE, 2018, p. 250 [17] “A radical new conception of man's relationship to the rest of nature would not only be a step towards solving the material planetary problems; there are strong reasons for such a changed consciousness from the point of making us far better humans” STONE, 2018, p. 251 [18] STONE, 2018, p. 252 [19] KOTZÉ, L. Global environmental constitutionalism in the anthropocene, 2016, p. 138 [20] Para aprofundamentos sobre o caso Cfr. Boyd, 2017, op. cit. p. 102-107 [21] Como menciona Boyd, o resort incluiria a construção de estradas, linhas elétricas, hotéis, restaurantes, piscinas, estacionamentos e infraestrutura de esqui que se espalharia por oitenta acres. O objetivo do projeto era atrair mais de cinco milhões de visitantes por ano, transformando o vale da remota natureza selvagem em um posto muito movimentado. Boyd, 2017, p. 102 [22] Trata-se de uma organização com mais de 125 anos que foi originalmente criada com foco na conservação das montanhas de Sierra Nevada na California. Desde então, o Sierra Club expandiu seu escopo e tem se envolvido também em soluções climáticas, acesso a água, ar e ambiente de qualidade. https://www.sierraclub.org/about-sierra-club [23] Tradução da autora. Apud BOYD, 2017, p. 104 [24] BOYD, 2017, p. 106

[25] GLOBAL ALLIANCE FOR THE RIGHTS OF NATURE (GARN). Rights of Nature Timeline. 2023. Disponível em: https://www.garn.org/rights-of-nature-timeline/. Acesso em: 14 mar. 2023.


Bibliografia

BOYD, David R. Rights of Nature. A legal revolution that could save the world. Toronto: ECW Press. 2017


STONE, Christopher. Should Trees Have Standing? Toward Legal Rights for Natural Objects. In: PEVATO, Paula M. (edited). International environmental law. Volume I. Routledge Revivals. 2018, p. 214-280


KOTZÉ, L. Global environmental constitutionalism in the anthropocene. Portland, Oregon: Hart Publishing, 2016.


GLOBAL ALLIANCE FOR THE RIGHTS OF NATURE (GARN). Rights of Nature Timeline. 2023. Disponível em: https://www.garn.org/rights-of-nature-timeline/. Acesso em: 14 mar. 2023.




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